Para Sporting e Benfica está a chegar a hora da verdade. Afastados há muito do título, eliminados das provas internacionais, os rivais da Segunda Circular têm amanhã a derradeira oportunidade de manter acesa a esperança na conquista de um troféu.
Quis o destino que esta meia-final se apresentasse assim com a cara de uma verdadeira final, na qual angústias e depressões de uma época atribulada poderão ser aliviadas ou mesmo suprimidas para quem vença, e os fantasmas da instabilidade e da crise profunda cairão sobre a cabeça dos derrotados.
Esta é a possibilidade de salvação. Sim, salvação, pois uma Taça de Portugal não é propriamente um Torneio do Guadiana. É a segunda mais importante competição futebolística de qualquer país, tem o peso de toda uma tradição, além de que abre a possibilidade de terminar a época em júbilo, ao fim e ao cabo a razão de ser do futebol, e de tanto dele gostarmos.
Para Sporting, mas sobretudo para o Benfica - cujas expectativas para a temporada eram bem mais elevadas - este é pois um jogo de vida ou de morte. Ou ainda mais que isso...
Vejamos o que nos pode reservar:
O DERBYA história dos derbys lisboetas tem já aproximadamente um século de existência, e muitos episódios interessantes de contar. Ou não fosse este o mais tradicional confronto do nosso futebol, e traduzisse a mais genuína (eu acrescentaria salutar) rivalidade que o desporto português desde sempre produziu.
Já aqui falei das
memórias com que Benficas-Sportings e Sportings-Benficas me foram marcando ao longo das três décadas que levo de seguidor apaixonado do fenómeno futebolístico.
Muitas alegrias, grandes desilusões – felizmente mais aqueles do que estas. Sempre muito entusiasmo, sempre a mesma paixão.
Apesar da conjuntural hegemonia portista, bastará olharmos para a maior parte das mesas de matraquilhos espalhadas pelo país (sobretudo a sul), para percebermos que Benfica e Sporting são os emblemas que melhor definem o ser português, como se de cara ou
coroa de uma mesma moeda se tratassem.
Rivais desde que nasceram, vizinhos desde há muitas décadas, representantes das duas cores da bandeira portuguesa, Benfica e Sporting sempre foram como que dois irmãos desavindos em luta pela herança. Uma luta sem tréguas, mas quase sempre dentro dos limites daquilo que deve constituir uma saudável rivalidade desportiva.
Um Benfica-Sporting ou um Sporting-Benfica nunca é pois apenas mais um. É sempre “aquele”, seja ele o do penalti do Jardel, o do golo do Luisão ou o do hat-trick de João Pinto. Trata-se de facto de um fenómeno apaixonante, onde para além do combate futebolístico, se verifica um interessante choque cultural e identitário. É sem dúvida o derby dos derbys em Portugal, e um dos mais significativos na Europa.
O de amanhã tem ainda a particularidade de não admitir empate, o que inegavelmente o tempera de forma ainda mais saborosa.
A HISTÓRIA Para a Taça de Portugal - e centremo-nos nela até porque é, nos dias que correm e com a questão do título nacional morta e enterrada, a
competição rainha do futebol português – os dois colossos da capital portuguesa já se encontraram em 17 eliminatórias e 8 finais. Tudo somado, 32 jogos entre ambos, com a ligeira vantagem a pender para os de Alvalade (16-14) – bem ao contrário do que sucede em jogos do campeonato.
Se olharmos apenas para os jogos disputados em Alvalade, a vantagem leonina torna-se mesmo avassaladora (9-2), o que não deixa de se revestir de alguma estranheza, sobretudo se tivermos em conta que as vitórias benfiquistas ocorreram em eliminatórias a duas mãos, que até acabaram, contas feitas, por sorrir aos leões. Vale isto por dizer que
o Benfica nunca eliminou o Sporting em Alvalade.
Contrariando a tendência verificada nas eliminatórias, das oito finais entre ambos, o Benfica venceu seis, o que significa que para os encarnados, olhando à história, talvez tivesse sido melhor defrontar o Sporting apenas no Jamor.
Deixando de lado as finais e a sua natureza peculiar, de entre todas as eliminatórias que me recordo, duas houve que gostaria de salientar. Uma por ser a primeira que a minha memória alcança - derrota copiosa por 3-0 com três golos do brasileiro Manoel-, e outra pelos números finais – 5-0 na Luz em 1986, com cinco minutos finais arrasadores do Benfica.
A primeira delas disputou-se em Março de 1977. Treinava o Benfica John Mortimore, que se viria a sagrar campeão dois meses depois. A época começara justamente em Alvalade, numa noite de sábado, com uma derrota do Benfica por 3-0, num jogo em que o público era tanto que chegava a ocupar partes do relvado, o que obrigou a adiar a hora do início da partida.
Nem queria acreditar quando, ainda na minha mais tenra infância, ao segundo Sporting-Benfica o resultado se repetiria: 3-0. Cheguei a pensar que todos os Sportings-Benficas acabariam assim, com derrotas copiosas por três golos sem resposta. Felizmente estava enganado…
Neste jogo da Taça, disputado numa bela tarde de domingo, o Benfica alinhou com Bento, Pietra, Barros, Eurico, Alberto, Toni, Shéu, Vítor Martins, Chalana, Nené e Nelinho. O Sporting terá apresentado um onze semelhante a este: Matos (nestes anos o Sporting chegou a apresentar cinco guarda-redes diferentes em cinco derbys sucessivos, Damas, Conhé, Valter, Matos e Botelho), Da Costa, Zezinho, José Mendes, Inácio, Fraguito, Baltasar, Marinho, Manuel Fernandes, Manoel e Keita.
O brasileiro Manoel fez o jogo da sua vida, apontando três golos e dando a eliminatória ao Sporting, à semelhança aliás do que acontecera na época anterior (1-0 após prolongamento, golo de Libânio), e do que sucederia na seguinte (3-1, dois golos de Manuel Fernandes, um de Keita, com Humberto Coelho a reduzir para o Benfica já na ponta final do desafio).
Em 1985-86, novamente com Mortimore a comandar a equipa, o Benfica conseguiu a maior goleada de sempre em derbys da Taça de Portugal. Jogava-se para os quartos-de-final numa tarde chuvosa de quarta-feira no Estádio da Luz.
Tive de faltar às aulas para ouvir o relato, e valeu bem a pena. 5-0 foi o resultado, com golos de Rui Águas, Álvaro, Vando e Manniche (2). Aos 84 minutos o Benfica vencia por 2-0, mas os últimos instantes foram penosos para os leões.
O Benfica alinhou com Bento, Pietra, Oliveira, Samuel, Álvaro, Carlos Manuel, Shéu, Diamantino, Vando, Rui Águas e Manniche. No Sporting jogavam Damas, Gabriel, Morato, Venâncio, Virgílio, Romeu, Oceano, Jaime Pacheco, Sousa, Manuel Fernandes e Jordão.
A vingança seria servida nessa mesma época, quando na Luz, no primeiro derby a que assisti ao vivo, o Sporting roubou o título ao Benfica vencendo por 1-2, e beneficiando o F.C.Porto, num jogo que indirectamente acabou por proporcionar o título europeu aos dragões no ano seguinte. Tinham razão de ser as lágrimas vertidas nas escadarias do terceiro anel recém inaugurado.
No ano seguinte aconteceria o 7-1, e depois uma sequência de muitas vitórias do Benfica. É também de vingança que se escreve a história dos derbys.
Estive presente nas duas últimas eliminatórias entre Benfica e Sporting, ambas na Luz: 1-3 em 2000, e 3-3 (vitória do Benfica por penáltis) em 2005, esta em condições bastante difíceis (uma valente gripe em noite gelada de Janeiro). Uma vitória para cada lado, portanto.
Amanhã será a terceira. Ver-se-á então para que prato pende esta balança.
AS CIRCUNSTÂNCIAS
Sporting e Benfica já se viram frente a frente em 17 eliminatórias na história da Taça de Portugal, mas poucas delas terão envolvido o grau de dramatismo que encerra o jogo de amanhã.
Particularmente para o Benfica, mais do que salvar a época, trata-se mesmo de salvar a face, sendo que uma eventual derrota nesta partida poderá fazer desabar todo o frágil edifício do futebol encarnado, de tão periclitante ele se encontra.
É o jogo do ano para o Benfica. É mesmo um jogo que pode marcar o fim de uma era, não se sabendo até que ponto o clube estará preparado para aguentar o choque de uma possível derrota, nem havendo certezas sobre as suas eventuais consequências.
Se há um homem que tem neste momento a cabeça no cepo, ele chama-se Luís Filipe Vieira. Vai ser para o presidente benfiquista que a ira dos adeptos naturalmente se voltará em caso de derrota, ou não fosse ele responsável pela construção (destruição?) de um plantel que considerou o melhor dos últimos dez anos, e pelo despedimento precipitado e injusto de dois treinadores só nesta temporada, sem que daí se tenham visto quaisquer resultados práticos.
Embora os leões não tenham muito que se orgulhar do que fizeram em 2007-08, ainda assim venceram a Supertaça, foram mais longe que os encarnados na Uefa, e seguem em melhores condições de conseguir um apuramento para a Champions, isto para além das diferenças de orçamento e, sobretudo, de investimento, que os separaram desde logo na estruturação dos respectivos plantéis. Uma eventual derrota, por dolorosa que seja, será seguramente bem mais tolerada no mundo sportinguista do que no reino das águias, até porque em Alvalade, nem treinador, nem direcção parecem ter o seu futuro ameaçado por esta partida, nem mesmo eventualmente pelo desfecho global da temporada.
AS EQUIPAS
Tanto Benfica como Sporting não deverão apresentar muitas surpresas no seu onze inicial.
Ao ataque dos leões deverá seguramente regressar o montenegrino Vukcevic, enquanto que na lateral esquerda, desde que em condições físicas, Grimi deverá ser titular. Romagnoli, poupado frente ao Leixões, deve também voltar ao onze.
Anderson Polga, lesionado, parece fora destas contas.Fernando Chalana, mau grado a hecatombe ocorrida diante da Académica, deve apostar num onze próximo do que disputou os últimos jogos, embora a utilização de Nuno Assis não seja de desprezar. Sairia da equipa nesse caso Nuno Gomes, a menos que Cardozo não recuperasse até à hora do jogo da mazela que o fez sair mais cedo da partida da última sexta-feira, cenário que para já parece afastado. Não deverá ser esta a opção, mas eu faria regressar Edcarlos ao centro da defesa de modo a permitir a incorporação de Katsouranis na meia direita do meio-campo. O central brasileiro já deu mostras de bastante insegurança pelo chão, mas é forte no jogo aéreo, e com a lesão de David Luíz não há grandes alternativas. Por outro lado, Katso aparenta uma clara desmotivação, ao que poderá não ser totalmente alheia a sua deslocação para o eixo da defesa.
AS ESTRELAS
Independentemente daquilo que tenha sido o rendimento recente das equipas, Sporting e Benfica dispõem nos seus plantéis de jogadores de inegável qualidade, capazes de, a qualquer momento, proporcionar grandes espectáculos.
Entre os leões destacaria Anderson Polga (que provavelmente estará ausente deste derby por lesão), Miguel Veloso, João Moutinho, Simon Vukcevic e Liedson. Sobretudo o “levezinho”, tem sido um verdadeiro talismã para o Sporting em jogos diante dos encarnados, e parece ter recuperado nas últimas semanas a sua melhor forma, facto de que a equipa tem beneficiado a olhos vistos.
Do lado do Benfica, as grandes figuras são o guarda-redes Quim, os defesas Luisão e Léo, os médios Petit e Cristian Rodriguez, e o ponta-de-lança paraguaio Óscar Cardozo. Mas de entre as águias emerge sem duvida Rui Costa, como o verdadeiro patrão da equipa. O “maestro”, com pés de veludo, não só é aquele que (de longe) maior qualidade técnica possui, como também se faz valer da sua experiência, construída ao longo de anos e anos de futebol internacional ao mais alto nível. É ainda uma verdadeira bandeira da mística benfiquista, interpretando-a em campo, com bola e sem ela.
OS GOLEADORES
Liedson no Sporting e Cardozo no Benfica são os homens de quem mais se esperam golos. O “Levezinho” já apontou 22 nesta temporada, ao passo que “Tacuara” leva 20. Um e outro têm decidido diversos jogos, e ninguém se admiraria que viesse a ser um deles a decidir o de amanhã.
O JOGO
Um derby é, por definição, imprevisível. Quaisquer que seja a situação momentânea dos clubes, estas são ocasiões em que todos se agigantam, todos querem vencer, e acabam por ser quase sempre meros detalhes a definir para que lado pende a vitória. Até se costuma dizer que a equipa que se encontra em pior momento leva frequentemente a melhor, teoria alicerçada em anos e anos de resultados inesperados.
Não é contudo (apenas) por isso que me atrevo a atribuir um ligeiríssimo favoritismo ao Benfica, mesmo podendo com isso surpreender de algum modo os leitores. Faço-o essencialmente por duas razões, uma antropo-histórica, e outra técnico-táctica.
No primeiro caso tenho como um dado mais ou menos adquirido que o Benfica reage melhor à pressão psicológica de um momento decisivo do que o Sporting, algo que se foi percebendo sobretudo ao longo das últimas décadas. Quando se trata de grandes decisões entre os dois (como é o caso), os êxitos tem invariavelmente pendido para o lado encarnado – finais de Taça (87, 96), decisões de campeonato (94, 05), decisões de segundo lugar (04) etc. -, ao que não será alheia a extrema juventude das equipas apresentadas pelos leões, mormente desde que o maná da sua formação começou a dar frutos; bem como algum exacerbar de rivalidades do lado do Sporting, que o leva muitas vezes a enfrentar o Benfica com os joelhos trémulos – algo que, diga-se, tem acontecido com o Benfica face ao F.C.Porto.
Por outro lado, se olharmos aos poucos momentos em que a águia voou alto em 2007-08, verificamos que Copenhaga, Donetsk, Guimarães e Alvalade têm em comum três aspectos: o grande dramatismo que envolveu cada uma dessas partidas, o facto de terem sido disputadas fora de casa, e de todas elas surgirem na sequência de anteriores resultados negativos. Ora nem mais nem menos que o panorama que temos face a esta meia-final.
Jogadores como Nuno Gomes, Luisão, Petit, Quim, Katsouranis, Léo ou Rui Costa (todos previsivelmente titulares) atravessam já fases de carreira em que a pressão dos grandes momentos pouco ou nada se lhes faz sentir. O mesmo não se poderá dizer de Rui Patrício, Miguel Veloso, João Moutinho, Pereirinha ou Yannick Djaló, e num jogo com a natureza deste, num momento de decisão absoluta, este é um factor que pode pesar bastante.
Também no aspecto técnico-táctico o Benfica pode levar alguma vantagem.
Se nos lembrarmos de todo o percurso dos encarnados ao longo da época, verificamos que os grandes desaires ocorreram em casa. Se o Benfica tivesse ganho todos os jogos disputados na Luz comandaria o campeonato, pois fora de portas tem um registo bastante apreciável, conseguindo mais pontos na condição de visitante (24), que na de visitado (21). Até nas provas europeias o Benfica soçobrou em sua casa – na Champions perdendo com o Shakhtar, e na Uefa com o Getafe. As melhores exibições – além das quatro acima referidas, há que englobar a do Bessa – sucederam em jogos longe do seu reduto. E tudo isto não acontece por acaso.
Efectivamente a equipa benfiquista está talhada para jogar com espaço livre à sua frente. Tanto Cardozo como Nuno Gomes rendem mais sem marcações demasiado pressionantes, Rodriguez ou Di Maria são jogadores de bola no pé e metros para correr, o próprio Rui Costa, fruto das já naturais limitações de ordem física, brilha mais quando vê menos adversários à sua volta. A jogar diante de adversários com uma postura competitiva mais audaciosa (fora de casa), as individualidades do Benfica sobressaem com outro fulgor, e os resultados não mentem.
Todas as dificuldades do Benfica nesta temporada se têm centrado nas deficiências ao nível da construção (sobretudo logo desde a sua primeira fase), o que se sente dramaticamente nos jogos em casa diante de adversários mais fechados. Ou seja, se em termos de processo ofensivo o Benfica vacila, já quando é chamado a um futebol de contenção, de cobertura de espaços e transições rápidas para as costas das defesas contrárias, a equipa rende, ganha e até já tem conseguido encantar. Em Alvalade o jogo terá quase seguramente estas características, ou seja, a menos que o Sporting se coloque muito cedo em vantagem, deveremos ter um jogo precisamente à medida deste Benfica.
É claro que tudo isto é susceptível de ficar de pantanas, quer por via de um detalhe – um golo cedo, uma expulsão -, quer pelo peso psicológico que este último resultado possa ter tido na mente dos jogadores encarnados, e que neste momento ainda não é avaliável. Mas uma antevisão a um jogo desta natureza tem forçosamente que partir sempre de alguns axiomas, que durante os noventa minutos podem perfeitamente não se verificar. Se assim não fosse, se, numa lógica positivista nos limitássemos apenas ao que é palpável e objectivo, pouco haveria para escrever antes de uma partida para a qual o que menos existe são certezas.
Espera-se também do clássico de Alvalade que seja naturalmente um bom espectáculo, uma noite empolgante, e que a arbitragem não seja protagonista, algo a que infelizmente os últimos derbys não têm conseguido fugir. Se derby sem casos não é derby, ao menos que o vencedor não deixe dúvidas quanto à transparência da sua vitória.
E já agora, se me permitem, que o vencedor seja o Benfica.
A ILUSTRAÇÃO
Para abrir o apetite, fica aqui o vídeo do último combate entre os rivais a contar para a Taça de Portugal. 3-3 na Luz, vitória do Benfica por penáltis - curiosamente depois de uma derrota em casa com o Beira Mar por 0-2 - grande espectáculo e alguma polémica. Enfim …um derby como deve ser !
Benfica-Sporting, 3-3 2004-05
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