Vejo futebol desde 1976, e já me irrita um bocado a
conversa do Benfica “de antigamente”, aquele que era fantástico e agora morreu
às mãos da modernidade.
É um mito que vive do saudosismo de alguns e da
ignorância de outros.
Criou-se a ideia de que todos os jogadores
encarnados dos anos 70 e 80 eram grandes craques, que jogavam maravilhosamente,
e encantavam um Estádio da Luz sempre a abarrotar de entusiasmo.
É tudo mentira.
Tivemos bons jogadores, como temos agora. Mas o estádio
raramente enchia (excepto nos "clássicos" e nas fases adiantadas das competições
europeias), e muitas das agora tão consensuais “lendas” eram na verdade
jogadores de rendimento irregular, por vezes até profissionais desleixados
quando comparados com o elevadíssimo grau de profissionalismo dos de hoje. Só que
se mantinham anos a fio no Benfica - muitos porque não tinham para onde ir,
pois os mercados de transferências nem existiam -, pouca gente via os jogos, que
não passavam na TV, e pelos relatos radiofónicos tudo parecia fabuloso. E nas
memórias difusas de juventude, ainda mais fabuloso parece.
Na verdade, muitos de nós temos é saudades de ser
jovens. Eu também as tenho.
Quando jogámos com o Steaua de Bucareste, com 120
mil pessoas na Luz quatro horas antes do apito inicial, eu estava lá. Tinha 18
anos, tinha o cabelo todo, pesava menos 20 kgs e tinha energia para dar e
vender. Se tenho saudades desse tempo? Obviamente tenho, e de tudo a ele associado. Mas quanto a futebol
no sentido estrito, isso foi um jogo, entre mais quatro ou cinco excepções (Marselha,
Anderlecht e alguns "clássicos") que ficaram na história , e na lenda, que
não correspondiam de todo ao que se passava nos domingos comuns, e que hoje
servem de termo de comparação injusto e desfasado com a realidade de cada
semana – criteriosamente escrutinada em transmissões televisivas hd e análises
subsequentes até enjoar.
Aconselho todos a verem alguns jogos do Benfica na
RTP Memória. Ainda esta semana passou um Benfica-Farense, de 1996, com um
estádio completamente às moscas, e uma equipa descaracterizada e deprimente.
O antigo Estádio da Luz, quando foi demolido, era um
elefante branco anacrónico, com muita história, mas já sem alma. Esta é a
verdade.
E as equipas do Benfica dos anos noventa, com uma ou
outra excepção (93, 94) eram uma treta, num clube amador e desorganizado - por
vezes mesmo caótico. E nos anos 80 teve dias, sendo que as provas europeias,
com outro formato e sem Lei-Bosman, eram muitíssimo mais facilitadas do que
hoje. Nos anos 70 e 60 ainda não havia Porto. E não esquecer que, antes de
Eusébio, o Sporting tinha mais campeonatos do que o Benfica, e depois de Eusébio é
o FC Porto que tem mais. Houve, portante, um período histórico diferenciado,
década de sessenta (sobretudo na primeira metade), em que o Benfica era um
grande europeu, tinha um super-jogador à escala mundial, e dominava
completamente no país. Foi um período de alguns anos. Desde há muito que o futebol se mercantilizou, e sendo Portugal um país
pobre no contexto europeu, esses tempos não são repetíveis.
Para além disso houve, claro, uma ou outra temporada
muito boa (73 ou 83, por exemplo), e é dessas que nos lembramos, pois só elas ficam na memória. Mas houve inúmeras crises, derrotas, fracassos, péssimas decisões de gestão e sempre muito amadorismo, que compreensivelmente
metemos na gaveta do esquecimento.
Assim,
o caso de Maxi Pereira parece-nos hoje muito diferente do de Artur Correia, Pizzi
parece-nos muito diferente de Diamantino, Ferro a anos-luz de Bastos Lopes,
Seferovic uma sombra de César Brito, e Vlachodimos um aprendiz de Bento. Ora
essa ideia não resiste aos factos. E já ninguém se lembra dos Garridos, dos
Hajrys, dos Mirandas, dos Tuebas, dos Padinhas, dos Tó Portelas, dos Ruis
Pedros, dos Nivaldos, dos Carlos Pereiras, dos Folhas, dos Paulos Campos, dos
Joeis, dos Vitais e dos Fonsecas, dos Rui Lopes, dos Cavungis, dos Pereirinhas,
dos Josés Domingos, dos Móias, dos Matines e dos Pedrotos. E omiti
propositadamente nomes dos anos noventa, pois aí o texto tornar-se-ia ilegível.
Deixemo-nos de fantasias. O Benfica de hoje, na
globalidade e enquanto clube no seu todo, é dos melhores de sempre. E tirando
o tempo de Eusébio - que não vivi - nenhum outro se lhe pode comparar. em rigor, em gestão, em profissionalismo, e em desempenho.
Exigência? Sim. Eu também acho que tínhamos
obrigação de ganhar ao Moreirense.
Mas bom senso faz
sempre falta, e rigor histórico também.