"O Benfica gastou 98,5 milhões em reforços, feito o desconto conseguido com Pedrinho – e antes de Lucas Veríssimo –, e terá recebido 76 milhões. Além dos 68 milhões por Rúben Dias, houve ainda a venda de Lema, os empréstimos de Florentino e Carlos Vinícius, além de uns trocos aqui e ali com outros jogadores. Contas feitas, os gastos ficam em 22,5 milhões, embora tenha de sublinhar-se a perda da maior referência defensiva, titular da Seleção Nacional e, hoje, do Manchester City, com os elogios a serem praticamente diários, inclusive do treinador Pep Guardiola, como podem ler neste jornal. No entanto, se afastarmos a parcela recebida deste nosso exercício, a conclusão mais óbvia a retirar dos resultados e exibições é que, 98,5 milhões de euros depois – 99,5 se somarmos a cláusula de Jorge Jesus de um milhão – o Benfica está muito longe de ser um plantel completo e equilibrado, estar consolidado no processo de jogo e ser, nesta altura, em janeiro, o mais forte candidato ao título, mesmo perante rivais a atravessar momentos financeiros muito difíceis. Pior, o investimento de 100 milhões, se nos permitirem arredondar, nada alterou o status quo dentro do grupo: Pizzi, Rafa e o hoje lesionado André Almeida – jogadores com qualidade, mas que têm mostrado, ao longo dos anos, dificuldades em manter o registo elevado sempre que a exigência sobe, seja nos confrontos com rivais diretos ou nas competições internacionais – continuam a ser as maiores referências. Ou seja, se aplicarmos aqui a lógica, os encarnados não fizeram crescer o nível médio de qualidade do grupo de trabalho. Mesmo em termos de carisma, os jogadores contratados deixam bastante a dever em termos de capacidade de liderança, com tamanha timidez que apresentam. A braçadeira tem passado de braço para braço, com Ferro a usá-la hoje, ao segundo jogo de início, depois dos 90 minutos com o Paredes.
Há a questão do treinador e, vivamos ou não um momento de anormalidade com a questão da pandemia – que é argumento válido para todas as equipas –, este talvez seja o pior trabalho, ainda que a meio e recuperável, reconhecido a Jorge Jesus. Se o gosto pelo jogo partido continua lá, há erros contínuos nos passes em fase de construção – que aumentam com Taarabt e/ou Gabriel em campo – e que expõem o setor mais recuado, e ainda uma primeira e segunda linhas de pressão que deixam constantemente a bola descoberta e que possibilitam ao adversário colocá-la nas costas da defesa. Depois, também os erros individuais que alguns jogadores acrescentam – o caso de Otamendi tem sido o mais flagrante – não ajudam. Se Jesus nada pode fazer neste último ponto, a equipa não parece ter evoluído muito nos anteriores. Mesmo que Gilberto agora se posicione mais por dentro, quando a bola circula do outro lado, para prever uma mais forte reação à perda.
Se defensivamente, as coisas não melhoram, o excessivo jogo interior em ataque posicional torna a equipa demasiado previsível. Everton é um jogador que não consegue jogar por fora, precisa que Grimaldo esteja em overlappings constantes, o que também o desprotege defensivamente. Rafa ataca muito mais o canal interior entre lateral e central do que a linha e já se sabe que Gilberto não consegue grande profundidade. Além disso, mesmo a forçar o jogo interior, os elementos mais adiantados estão sempre muito estáticos sem procurar movimentos de rotura. Waldschmidt continua a ser o único a tentar encontrar espaço entre linhas, mas atravessará um momento de menor confiança – e acaba quase sempre como sacrificado, ainda que com outros em pior momento.
Mesmo que apresente largura, se ninguém se movimentar, o impasse continua. Nos Açores, verificaram-se algumas melhorias no primeiro tempo, mas a verdade é que o Santa Clara deu 45 minutos de avanço.
O que piorou bastante foi a transição ofensiva, com o desperdício de inúmeras situações de superioridade e igualdade numérica em determinados jogos, e que se explica pela tomada de decisão geralmente deficiente dos atacantes, nomeadamente Rafa, Seferovic e Darwin. O uruguaio tem também outro defeito grave, que é o primeiro toque – a receção simples ou orientada – e que o tem prejudicado em muitos momentos. Apresenta outras valências e não são poucas, mas se quer singrar ao mais alto nível, tem de começar a reagir melhor ao momento em que recebe a bola. A isso e ao posicionamento no momento do passe de rotura.
As declarações do técnico também fazem parte do pacote. O vamos arrasar vai ter eco cada vez maior sempre que os jogos não correrem bem, mas têm surgido igualmente declarações menos adequadas sobre alguns jogadores, como Gonçalo Ramos e agora Diogo Gonçalves, que nada lhes acrescenta em termos de confiança. E, sobretudo, aquela em que colocou o futebol brasileiro ao nível da Premier League terá deixado os adeptos preocupados. Será que Jesus pensa mesmo assim, e daí a aposta em Everton, os suspiros por Gerson e Bruno Henrique, e agora a chegada de Lucas Veríssimo? É que se é verdade que JJ beneficiou de um pensamento e método europeu – e talvez do melhor plantel do Brasileirão, reforçados com jogadores acabados também de chegar da Europa – para ganhar o que ganhou pelo Flamengo, a realidade no Velho Continente é bem outra.
Há questões mais profundas, que se prendem com o regresso à Luz depois da passagem pelo rival – com acusações e palavras feias, entretanto certamente já esquecidas pelas partes, embora não pelos adeptos –, mas sobretudo depois da mudança de rumo. Primeiro, a questão de princípio: ao fazer regressar Jesus, Luís Filipe Vieira resignou-se àquele que passou a ser o melhor treinador que o Benfica poderia contratar, fosse ou não verdade na altura. Uma espécie de fim da história, como professava Fukuyama.
Depois, o paradigma. O emblema da Luz chegou a ter um dos melhores departamentos de scouting da Europa e ainda terá também uma das melhores academias de formação, com jogadores que estão à porta da equipa principal. A porta parece fechada para os dois circuitos, enquanto Jesus estiver no banco. Contratado quase com um selo de garantia de sucesso imediato – que passava pelo apuramento para a Liga dos Campeões e que se estende ao título e, agora, a uma boa participação na Liga Europa –, é difícil não olhar para estes primeiros meses com alguma desconfiança.
O Benfica parece parado no tempo. Em campo, não evolui. Na política desportiva, terá involuído."
Com a devida vénia, Luis Mateus em "A Bola"