Desde a sua fundação, há mais de um século atrás, Benfica e Sporting têm protagonizado aquele que é, inquestionavelmente, o mais apaixonante duelo do nosso desporto-rei.Muitas são as histórias em redor do derby lisboeta, muitas as alegrias, muitas as mágoas, quer para um, quer para outro lado.
Como qualquer adepto empenhado, também eu guardo as minhas memórias de um clássico que acompanho com fervor desde tenra idade. É delas que trata o texto que se segue.O primeiro derby lisboeta de que me recordo foi disputado em Alvalade em Setembro de 1976. Jogava-se a primeira jornada do campeonato 76-77, e recordo-me de, em casa dos meus avós - onde habitualmente passava férias – me ter ido deitar a ouvir o relato num pequeno transístor repousado sobre a almofada. O jogo começara bem mais tarde que a hora marcada, dada a quantidade de pessoas que inundava a pista e as extremidades do relvado, terminando já a noite ia alta. Depois de alguns excessos revolucionários que remeteram injustamente o futebol para o campo das alienações inconvenientes, a paixão do povo reacendia-se de novo. Mas a crise e o FMI já batiam à porta.
O Benfica perdeu por 3-0, com os golos todos marcados já na ponta final do desafio. O então jovem Manuel Fernandes, Camilo e a estrela africana Keita (recém contratado) foram os marcadores, abrindo uma mini-crise no rival da Luz, que, cinco jornadas de empates e derrotas depois, arrancaria em Outubro para uma série de 56 jogos sem perder para o campeonato, garantindo o título dessa época com uma vantagem considerável, e perdendo o seguinte, para o FC Porto, sem qualquer derrota - caso singular na história do futebol português. Mas nessa noite o desencanto foi tal que propus em surdina ao meu pai, pela primeira e única vez na vida, a mudança de clube para os verde e brancos, que – passou-me então pela cabeça – talvez fossem melhores. Ele respondeu liminarmente que não, recordou-me as Taças dos Campeões, as finais europeias e os muitos títulos conquistados. Convenceu-me, até hoje. Até sempre.
Curiosamente, os dois primeiros jogos de futebol que guardo na memória – à parte aqueles em que, acompanhando o meu pai, então dirigente de um pequeno clube alentejano, me sentava no banco de suplentes com os jogadores, entregando-lhes inclusivamente garrafas de água, tarefa que me enchia de orgulho -, foram este derby e, de forma mais difusa, um Bayern de Munique-Benfica ainda na época de 1975-76 para a Taça dos Campeões, que a RTP transmitiu, e que o Benfica perdeu por 5-1 com vários golos de Gerd Muller. Foram pois, paradoxalmente, duas derrotas copiosas que estiveram no âmago do meu benfiquismo fiel. Depois deste, muitos outros derbys se seguiram.
Ainda na mesma temporada, a contar para a Taça de Portugal, novo jogo em Alvalade, nova derrota por 3-0. Desta feita foi o brasileiro Manoel que marcou todos os golos, realizando provavelmente a melhor exibição da sua vida. Cheguei a supor que todos os Sportingues-Benficas terminariam com 3-0, coisa que mais tarde vim a verificar nada ter de verdadeiro.
Na Luz jogar-se-ia em Janeiro de 1977 o encontro da segunda volta do campeonato. Vitória benfiquista por 2-1, golos de Vítor Martins e Chalana (este já perto do fim), contra o golo de Manuel Fernandes. Foi a primeira vitória sobre o Sporting de que me recordo, num jogo importantíssimo, que catapultou o Benfica para o primeiro lugar da classificação, de onde não mais sairia até final do campeonato. Ainda me lembro da capa da “Equipa” na quarta-feira seguinte – revista que o meu pai me comprava na altura, e que, recheada de belas fotografias, fazia as minhas delicias -, na qual surgia o Vítor Martins, com a braçadeira de capitão (Toni não jogou), a festejar o primeiro golo.
Na época seguinte, um empate a abrir o campeonato em Alvalade, na estreia dos ex-benfiquistas Jordão e Artur pelos leões, jogo que me recordo de ouvir pela rádio (os relatos radiofónicos são uma marca indelével na minha infância), numa noite de sábado na cozinha dos meus avós, local onde me refugiava sempre que havia jogo e não queria que me incomodassem.
Na segunda volta, mais do que a vitória do Benfica por 1-0, ficou para a história uma das mais caricatas situações de sempre vividas nestes jogos: a célebre rábula do brinco perdido. Vítor Baptista, já enredado nas malhas das drogas duras, era um caso bicudo no balneário encarnado. Como se tratava de um grande jogador, de características únicas no nosso país (avançado corpulento e bom cabeceador), as suas inúmeras provocações foram sendo ultrapassadas com maior ou menor tolerância. Esta era a sua última época no clube, pois meses depois, em vésperas de um Benfica-Liverpool a contar para a Taça dos Campeões, decidiria unilateralmente regressar a Setúbal e não mais jogar de águia ao peito. Morreu aos 50 anos, toxicodependente, vivendo numa barraca, depois de várias detenções por roubo.
Naquela tarde, ao marcar um único e fabuloso golo da partida, perdeu o brinco de brilhantes – foi o primeiro português que me lembro de ver usar tal adereço, até então exclusivamente feminino -, não hesitando em fazer parar o jogo para o procurar. Ao fim de alguns minutos, perante a incredulidade de árbitro e adversários, Vítor – que se auto-intitulava o maior jogador português de sempre a par de Eusébio – pôs Toni, Nené e alguns outros colegas de joelhos no relvado, à procura da tal preciosa peça. Diria ele depois que o prémio de jogo não dava para o pagar, e por isso se justificava a interrupção. Não mais chegou a encontrar. Nem o brinco, nem a vida.
Em Novembro de 1978 teve lugar um dos derbys que recordo com mais entusiasmo e saudade. Numa bela tarde de domingo martinheiro, na presença do General Eanes – numa altura em que os políticos ainda olhavam o futebol de soslaio - o Benfica chegou ao intervalo a vencer por 5-0 (!). Conta-se que o presidente Ferreira Queimado terá oferecido um prémio suplementar ao intervalo por cada golo mais. Mas os jogadores não corresponderam, o Sporting tentou dar alguma dignidade ao momento, e na segunda parte nada mais aconteceu.Apostara com o meu avô sportinguista – é verdade, tinha um avô adepto moderado dos leões -, suponho que vinte escudos, acerca do vencedor deste jogo. Ou seja, se o Benfica ganhasse eu ganhava vinte escudos, se perdesse a coisa era esquecida. Passei toda a primeira parte de volta dele, lembrando-o com um entusiasmo esfusiante, a cada golo, da tendência da aposta. Ele nem queria acreditar no que íamos ouvindo pelo rádio.À noite recordo-me de a RTP2 ter transmitido um resumo de vinte minutos dessa partida, o que à época era um luxo. Os comentários eram de Joaquim Letria. Julgo ter sido o primeiro derby do qual vi imagens televisivas. Nené e Alves bisaram, Reinaldo marcou o outro golo.
Na mesma época o Benfica voltou a vencer o Sporting, desta vez em Alvalade. Numa tarde chuvosa, João Alves marcou de penálti o golo solitário daquela que foi a primeira vitória fora que recordo em derbys, após uma exibição que, tive oportunidade de confirmar anos mais tarde numa visita pelos arquivos do jornal “A Bola”, se situou num plano bastante frouxo.
Por falar em televisão, um dos primeiros derbys televisionados de que me recordo, teve lugar em Abril de 1982. Era a última hipótese que o Benfica tinha de discutir o título de 81-82, para o que teria forçosamente de ganhar em Alvalade. Era o jogo do ano e o então presidente do Sporting João Rocha decidiu oferecer ao país a transmissão televisiva directa e integral – longe vinham os tempos em que o futebol não passaria sem TV…
Logo nos primeiros minutos Carlos Manuel marcou para o Benfica, num pontapé de canto directo que originou alguma polémica, pois nunca se chegou a ter a certeza de a bola ter mesmo entrado na baliza, uma vez que Marinho, loiro médio leonino, a cortou de cabeça, aparentemente sobre a linha - ainda nem se sonhava com chips, não havia computadores, nem relógios digitais, nem DVD’s, nem sequer cassetes de video. O Sporting empatou de penálti por Jordão, e assim se chegou ao meio da segunda parte, quando, num lance dividido, Manuel Fernandes atingiu a cabeça de Bento com os pitons. O saudoso guardião benfiquista, que não era para brincadeiras, levantou-se como uma mola, e com a bola ainda nas mãos encostou o ombro ao queixo do avançado leonino, que por acaso era seu vizinho na margem sul do Tejo. Mas derby era derby, e este aproveitou a dádiva, teatralizando uma agressão que fez o árbitro expulsar o guarda-redes benfiquista e assinalar a respectiva grande penalidade. Estava decidido o campeonato. Jordão ainda voltou a marcar, fazendo assim um hat-trick frente à sua antiga equipa.
O Benfica só voltaria a vencer em Alvalade na época 1983-84. Era Eriksson o treinador, e, já depois de Diamantino ter falhado um penálti, Nené converteu uma segunda grande penalidade já nos minutos finais. Não me perguntem se foram bem ou mal assinalados, pois na altura não me preocupava muito com essas coisas – com Pinto da Costa a dar os primeiros passos na presidência portista, e sem transmissões televisivas, a arbitragem era coisa de somenos.
Eis-nos chegados a Abril de 1986, precisamente um mês antes do episódio Saltillo. À entrada da penúltima jornada, o Benfica tem dois pontos de vantagem sobre o F.C.Porto no topo da tabela classificativa. Os portistas jogam no Bonfim, e se escorregarem e o Benfica vencer em casa, temos campeão vestido de vermelho. Com quem é que o Benfica joga? Precisamente com o Sporting, que meses antes levara mais cinco na Luz, desta vez numa eliminatória da Taça (numa chuvosa quarta-feira à tarde, em que tive de faltar às aulas para ouvir o relato).
Foi o meu primeiro derby ao vivo, marcado pelo drama e pelas lágrimas.O Terceiro Anel já estava fechado. Numa obra que custara as saídas de Chalana, Stromberg e Eriksson, o então presidente Fernando Martins transformara o Estádio da Luz num dos maiores da Europa e do Mundo, dotando-o de uma capacidade de 120.000 espectadores. Como sem cadeiras cabia sempre mais um, chegaram a lá estar, oito meses depois, 140.000. Eu ví ! – não os contei, é certo, mas a quantidade de pessoas em cima das escadas, apertada contra as portas, e mesmo nos corredores, sem possibilidade de cortar o bilhete, não deixa muitas dúvidas de que num célebre Benfica-FC Porto de 1987 (3-1 com hat-trick de Rui Águas) - em que familiares meus ficaram no carro a ouvir o relato com o bilhete na mão, e em que estariam cerca de 40 mil portistas -, os números não andariam longe desse impressionante recorde.
Neste decisivo Benfica-Sporting não estavam 140 mil, mas estariam, seguramente, um pouco mais do que os 120 mil da lotação oficial. Ou seja, mais cabeça menos cabeça, o estádio estava completamente cheio. Cheio sobretudo de benfiquistas, ávidos de festejar um título que na época anterior lhes escapara, em tempos em que isso ainda causava alguma estranheza.Fiquei no novo terceiro anel. O sol era abrasador. Os jogadores lá em baixo assemelhavam-se aos bonequinhos do “subbutteo”, e eu, na companhia do meu pai (que muito tinha pressionado no sentido de me levar), e de mais um amigo dele, delirava com o panorama de cores que se apresentava diante de mim.Tudo parecia correr bem, mas o Sporting não iria querer participar na festa. Enquanto Futre - com um grande golo, em que correu quase 50 metros com a bola dominada - dava a vitória ao FC Porto em Setúbal, uma equipa de leões onde avultavam Jaime Pacheco, Sousa, Manuel Fernandes, Jordão, Oceano, e o inspiradíssimo guarda-redes Vítor Damas, adiantava-se rapidamente no marcador pelo avançado de Sarilhos, e pouco depois aumentava a vantagem pelo defesa-central Morato.
O Benfica, com um bom onze mas com um plantel limitado, apresentava-se na fase final da temporada com grande desgaste físico e anímico, sobretudo sentido a partir do momento em que se viu arredado das meias-finais da extinta Taça dos Vencedores das Taças, em casa frente ao Dukla de Praga, sofrendo um golo nos últimos minutos depois de se colocar em vantagem na eliminatória, jogo que me causou uma das maiores amarguras da minha infância desportiva (o que eu chorei…), e que me fez, à revelia de todos, associar ao clube da águia por minha conta e risco. Voltemos ao derby, cuja segunda parte foi dramática. Ainda no primeiro quarto de hora, Michael Manniche – o dinamarquês de quem o médio do Atlético de Madrid retirou a alcunha - de cabeça, a cruzamento de Diamantino, reduzia a diferença. Nos últimos trinta minutos assistiu-se a um vendaval de ataque benfiquista, à procura do golo que permitisse, pelo menos, manter de pé a hipótese de depender de si próprio na última jornada, em que teria de se deslocar ao Bessa – anos mais tarde passar-se-ia algo parecido, mas com final bem diferente. Vítor Damas estava no entanto em grande forma e foi negando, uma após outra, todas as ocasiões de golo criadas pelo Benfica.No final, um terrivelmente decepcionante 1-2, e o quase adeus ao título – que seria confirmado na semana seguinte com derrota no Bessa, e nova vitória portista, agora diante do Sp.Covilhã.
As escadarias do estádio eram um desolador e fúnebre espectáculo. Gente, pequena e grande, a chorar, grande consternação, o drama do futebol na sua mais dolorosa faceta.Aprendi nessa tarde que nem todas as belas histórias terminavam com um final feliz. Fica o onze encarnado, que ainda hoje sei de cor: Bento, Veloso, Oliveira, Samuel, Álvaro, Carlos Manuel, Sheu, Diamantino, Wando, Rui Águas e Manniche. Foi uma das grandes desilusões da minha vida, e provavelmente o meu mais amargo derby de sempre.
Quem disse que a história não se repete ? Um ano depois, eis-me no mesmo local, e na mesma situação. Depois de ter perdido 7-1 em Alvalade na primeira volta, o Benfica chegava à penúltima jornada novamente com hipótese de se sagrar campeão. Bastava vencer o rival, pois uns minutos antes o F.C.Porto, em vésperas da valsa argelina de Viena, perdia em Portimão e entregava todo o ouro ao (seu) bandido.Era com expectativa de vingar o ano anterior, de vingar os 7-1, mas acima de tudo de comemorar o meu primeiro título em pleno estádio. Já um pouco mais crescidote – sem o meu pai, e com amigos mais velhos – vivi esta jornada num Maio quente e bonito, perante mais uma das grandes enchentes da história do antigo Estádio da Luz, já depois do terceiro anel fechado, e antes do Mundial de sub-20 (que obrigou a reduzir ligeiramente a lotação, para construir novos camarotes de imprensa), e da posterior aplicação de cadeiras que pôs alguma ordem na coisa.Desta vez, o final foi mesmo feliz. Chiquinho Carlos e Nunes adiantaram o Benfica ainda na primeira meia-hora. O golo de Marlon Brandão perto do fim, apenas serviu para dar mais emoção a uma enorme festa, que começou com a invasão do relvado, e terminou, para mim, num belo cherne grelhado, regado com um fantástico vinho rosé (a primeira vez que bebi tal coisa), num restaurante setubalense chamado “O Quintal”, que não faço ideia se ainda é vivo ou já entregou a alma ao criador.
A partir daqui, já mais independente, senão no aspecto económico, ao menos no plano formal, comecei a marcar presença amiúde nestes grandes momentos, sozinho ou acompanhado, de boa saúde ou saído da cama, como veremos mais adiante.Na mesma época vi ainda pela televisão a final da Taça de Portugal, que pôs os rivais lisboetas de novo diante um do outro, agora no Jamor. Foi uma sobremesa na vingança já de certo modo servida com a conquista do título. Uma exibição esplendorosa de Diamantino (porventura uma das melhores da sua brilhante carreira) chegou para liquidar uma vez mais os leões. Novamente 2-1, e dobradinha para John Mortimore, coisa que até hoje só Eriksson seria capaz de voltar a conseguir.
Recuemos uns meses, e vamos então (lá terá de ser) falar dos tais 7-1.
Foi um jogo que nada valeu em termos de palmarés – o Benfica faria a dobradinha, o Sporting ficaria em 4º -, mas a rivalidade fratricida com que “lagartos” sempre olharam para “lampiões” (muito mais que o contrário, diga-se), faz com que para muitos deles essa tarde, mais do que uma simples jornada de felicidade, se tenha tornado na maior glória de uma história centenária, tão somente pelo mórbido prazer de ver o rival humilhado a seus pés. Para quem, como o autor destas linhas, estava do outro lado da barricada, a importância atribuída pelos leões a este episódio resulta algo estranha. Até porque, muito mais dolorosa do que essa derrota, tinha sido, por exemplo, aquela de “apenas” 1-2, uns meses antes em plena Luz. Mas o futebol tem destas coisas, e vive também destes momentos singulares.Não estive em Alvalade nessa tarde. Ainda bastante jovem só ia aonde me levavam, e nessa tarde limitei-me a ouvir pela rádio, com toda a atenção, o relato das incidências do derby. Desde cedo se percebeu que o jogo não ia correr bem aos encarnados. O Sporting, orientado por Manuel José, vinha de uma sequência de bons resultados, e entrou a todo o gás na partida, marcando ainda antes de cumprido o primeiro quarto de hora.
Até final da primeira parte não houve mais qualquer golo. Já depois de golos de Manuel Fernandes para o Sporting, e Vando para o Benfica, o marcador assinalava um normalíssimo 2-1, quandofaltavam apenas 25 minutos do final da partida.
O Benfica tinha de arriscar tudo e procurou fazê-lo, mas as consequências foram caóticas. Em apenas seis minutos os leões marcam por três vezes (por Ralph Meade, Mário Jorge, e de novo Manuel Fernandes), elevando o placar para impressionantes 5-1. Tudo saía bem ao Sporting. O Benfica entrava em desnorte total, e cada bola que se aproximava da sua área parecia levar fogo. Aconteceria algo parecido, treze anos depois, numa tristemente célebre noite em Vigo.O Sporting, empolgado por um Estádio de Alvalade em chamas, marcava ainda mais dois golos, ambos por Manuel Fernandes, e se o jogo durasse mais tempo seguramente que as contas não ficariam por aí.7-1 era a maior goleada de sempre entre os dois clubes. O Benfica, além do tal jogo da taça, vencera em 1946 por 7-2, em 1979 por 5-0, mais duas vezes por 5-1, quatro por 4-1. Em 1994 chegaria a vingança: em jogo decisivo para o título, no mesmo cenário, o Benfica triunfaria por 3-6. Mas 7-1 nunca sucedera, nem nunca veio a suceder depois.Na bancada queimam-se cachecóis e bandeiras do Benfica. Rasgam-se alguns cartões – há sempre quem lhe custe mais a digerir estas coisas -, mas o Benfica manteve-se lá bem na frente do campeonato.Por mim, desinteressei-me do jogo a partir daqueles seis fatídicos minutos. Os três pontos estavam perdidos, e havia que seguir em frente.Vinte dias depois jogava-se na Luz um importantíssimo Benfica-FC Porto (o tal dos 140 mil). O Benfica venceu e partiu para a conquista do título.
Em 1987-88, em jogo com poucas implicações num campeonato já decidido a favor do eficaz FC Porto de Ivic, assisti a uma das melhores exibições do Benfica em derbys. Aos 50 minutos de jogo já havia 4-1 (bis de Magnusson e Rui Águas), pouco depois Mozer atirou à barra na sequência de um livre, e em poucas ocasiões a vingança dos 7-1 terá estado tão próxima. Esse Benfica, com Toni ao leme, chegaria à final da Taça dos Campeões em Estugarda. O Sporting vivia dias difíceis, com uma equipa descaracterizada e recheada de brasileiros de qualidade duvidosa. Desse jogo recordo ainda uma longa caminhada pedestre desde a Estefânia até à Luz, e respectivo regresso. À excepção de uma ocasião em que, em Madrid, já pela noite dentro, fui desde para lá de Castilla até à Porta del Sol, não me recordo de alguma vez ter andado tanto a pé.
Em Dezembro de 1988 novo derby, nova enchente, nova vitória. Perante um leão eivado de unhas (Douglas, Silas, Carlos Manuel, Ricardo Rocha, Eskilsson) trazidas por um presidente com uns bigodes inversamente proporcionais à sua seriedade, Magnusson e Pacheco resolveram um jogo também marcado pelo caso Hernâni, médio que acusou a presença de cocaína no controlo anti-doping, que dava na altura os primeiros passos na modalidade. Foi suspenso, mas na época seguinte ainda voltaria a tempo de disputar a final da Taça dos Campeões, em Viena frente ao AC Milan. Nunca se chegou a saber se era culpado, como as evidências pareciam demonstrar, ou inocente, como ele insistia em clamar. A sua carreira e a sua vida, daí em diante, seriam normais, e julgo que ainda joga futebol de praia.
O primeiro derby a que assisti em Alvalade disputou-se nas primeiras jornadas da temporada seguinte - a da final de Viena, portanto. Foi a única vez que me sentei na bancada central daquele estádio, pois as companhias com que fui ao jogo eram influentes e endinheiradas, e arranjaram-me um convite. O Benfica triunfou com um golo solitário de César Brito respondendo a cruzamento do extremo angolano Abel Campos, aos poucos minutos da segunda parte. Entre os leões havia grande expectativa para essa temporada, fruto de aquisições como a de Fernando Gomes, o bi-bota de ouro que saíra a mal das Antas, ou do central internacional brasileiro Luisinho. Mas na equipa de Eriksson, um Ricardo Gomes na defesa, um Valdo no meio campo, e um Magnusson na frente -todos no auge das respectivas carreiras - davam poucas hipóteses à concorrência e tornavam o futebol encarnado verdadeiramente demolidor. Esse início de época foi marcado por várias goleadas e exibições espectaculares, embora posteriormente a aposta europeia tenha acabado por deixar cair o título nacional para um F.C.Porto de transição, onde agora actuava …Rui Águas (não me esqueci, não me esqueço, não lhe perdoo, e nunca lhe perdoarei!).
Após três anos de ausência, voltei a um derby em Dezembro de 1993. Estava-se na famosa temporada do título de Toni, que durante longos onze anos foi o “último”. O famoso verão quente – não o gonçalvista, mas o benfiquista – tinha feito sair da Luz Paulo Sousa e Pacheco a caminho do Sporting de Sousa Cintra. João Pinto por pouco não lhes fez companhia, acabando resgatado in-extremis em Torremolinos por Jorge de Brito. Ao contrário do que se terá pensado no reino do leão, essa humilhação foi a força maior do Benfica ao longo de toda essa temporada. A equipa benfiquista faria nesta temporada alguns dos jogos mais espectaculares da história do clube, como os célebres 3-6 que não tarda a aparecer por aqui, ou um 4-4 em Leverkusen para a Taça das Taças, que também ficou na memória de todos.
Na primeira volta, já com Sporting e Benfica a disputar o primeiro lugar, e na semana seguinte ao terrível acidente que roubou uma promissora carreira ao russo Cherbakov, ao incompreensível despedimento de Bobby Robson na sequência de uma eliminação europeia em Salzburgo, e à contratação de Carlos Queiroz, o Benfica serviu a primeira dose da sua vingança. Venceu por 2-1, depois de Figo (a primeira vez que o vi jogar) ter aberto o placar na sequência de um canto – as bolas paradas eram então o ponto fraco dos encarnados -, de Yuran ter empatado no início da segunda parte, e Isaías, com um forte remate de meia distância, ter assegurado a vitória e a prenda de Natal dos benfiquistas. Não foi pois o regresso que Paulo Sousa e Pacheco desejavam, numa equipa que tinha também Paulo Torres, Peixe, Nelson, Cadete e Balakov.
Este jogo foi para mim inesquecível - pela primeira vez (não única) vi um jogo do Benfica directamente saído da cama, onde combatia uma terrível gripe e ardia em febre. Perante a estupefacção e mesmo indignação da minha mãe, arranquei sozinho de Évora para Lisboa, com muita roupa em cima, e os bolsos carregados de analgésicos e antipiréticos, para não deixar de apoiar a equipa em tão delicado momento. Valeu a pena, e até a doença me passou. Acabei na Portugália da Almirante Reis a comemorar a vitória, por entre cervejas frescas e restos de dor de garganta.
Para a segunda volta estava guardado um dos melhores jogos da história do futebol português, e um dos mais inesquecíveis derbys alguma vez disputados.
Lamentavelmente não pude estar presente no estádio nessa tarde de Maio de 1994. Embora já acompanhasse bastante o Benfica, não consegui bilhetes para a partida, coisa que então, sem Internet, sem lugares cativos, sem contactos em Lisboa, acontecia com alguma frequência.Vi o jogo numa televisão de 33 cm e a preto e branco em casa de um colega de lides universitárias, por sinal sportinguista, o que deu também acrescida peculiaridade à situação.Faltavam apenas mais quatro jornadas para terminar a prova e, assim sendo, quem vencesse ficaria com o caminho aberto para o título.Não se tratava de um título qualquer. Era talvez o campeonato mais importante da história do Benfica até então. Era o título do orgulho resgatado, depois de quase se assistir ao desmantelamento da equipa e do próprio clube, que continuava mergulhado num mar de dívidas e dificuldades estruturais diversas. Por outro lado, o Sporting não vencia qualquer prova havia doze anos. Era aquilo a que se pode chamar um jogo de vida ou de morte, e logo entre os eternos rivais.
A tarde estava chuvosa e o estádio a abarrotar. Recordo que até o pontapé de saída foi rodeado de suspense, com o árbitro (o recentemente falecido Vítor Correia) a mandá-lo repetir.Foi talvez a única vez que me lembro de ver Rui Costa no banco do Benfica, o que se deveu ao facto de o então jovem jogador atravessar uma fase de grande desgaste físico.O Sporting entrou de forma avassaladora, dominando completamente a primeira meia hora de jogo. Logo aos dez minutos, Jorge Cadete corresponde a um cruzamento e bate de cabeça o guardião Neno abrindo o activo. Pouco depois nova oportunidade desta vez desperdiçada por Iordanov. O Benfica mal respira e teme-se o pior. Alvalade ferve de euforia.Aos 25 minutos de jogo surge João Vieira Pinto, que dá nesse momento início à mais memorável exibição da sua carreira, e a um dos desempenhos individualmente mais bem conseguidos da história do futebol luso. O jovem avançado ganha um ressalto a Paulo Sousa, rodopia e estoira desde trinta metros de distância batendo inapelavelmente um impotente Lemajic. Contra a corrente do jogo o Benfica restabelecia a igualdade.Foi sol de pouca dura, pois alguns minutos mais tarde, na sequência de um canto, Luís Figo, novamente de cabeça, faz o segundo golo dos da casa, devolvendo a loucura às bancadas de Alvalade.Mas João Pinto parece cada vez mais decidido a entrar para a história, e pouco depois, num extraordinário lance individual em que dribla dois defesas sportinguistas já no interior da área, atira mais uma vez fora do alcance do guardião jugoslavo. 2-2 num jogo cada vez mais empolgante. A um minuto do intervalo, num livre estudado Vítor Paneira desmarca-se e cruza para a área onde Isaías ganha de cabeça, e novamente João Pinto, também de cabeça, faz um inacreditável hat-trick, dando vantagem ao Benfica ainda na primeira parte, poucos minutos depois dos encarnados parecerem à beira do KO.Ao intervalo de um jogo de loucos, com o resultado ainda completamente em aberto, Carlos Queiroz faz uma substituição suicida, retirando o lateral esquerdo Paulo Torres e colocando o extremo Pacheco em campo. O Benfica, mais experiente, saberia ganhar a partir daí definitivamente vantagem no jogo, marcando todos os restantes golos por esse flanco.
Logo nos primeiros minutos do segundo período, Vítor Paneira escapa-se a Paulo Sousa, cruza para a área, João Pinto salta por cima da bola , que sobra para Isaías isolado que fuzila Lemajic fazendo o 2-4. Começava-se nesse momento a ver o fundo do tacho deste jogo, pois pela primeira vez, e já na segunda parte, uma das equipas ganhava vantagem de dois golos.Por volta do quarto de hora, João Pinto dá ainda mais brilho à sua prestação com uma jogada individual extraordinária, que culmina com um drible sobre Paulo Sousa já dentro da área (perfeita metáfora de tudo o que significara essa temporada), e um passe soberbo a isolar novamente Isaías que bisa no jogo elevando o resultado para 2-5. A festa era agora claramente do Benfica, que se sentia à beira da vitória e do título.Já em clima de festival benfiquista, e já com Rui Costa em campo, mais uma vez Vítor Paneira, mais uma vez pela direita do ataque encarnado, cruza para a entrada da área onde Hélder, em acção ofensiva, remata em vólei para o 2-6 que cada vez mais assumia a natureza de escândalo. Era a hipótese de vingar os 7-1 ali mesmo sofridos oito anos antes.João Pinto entretanto era substituído, ficando a imagem do aperto de mão que Carlos Queiroz, seu treinador nos sub-20, lhe fez questão de dar, como sinal do reconhecimento do seu fenomenal trabalho nessa tarde.O Sporting, num último assomo de dignidade, ainda reduziu por Balakov de penálti, mas o campeonato estava entregue.No dia seguinte “A Bola” titulava “Céus ! 6-3 em Alvalade; Benfica sublime, empolgante e aterrador”, e atribuía pela única vez na sua história a nota 10 a João Vieira Pinto, que com uma exibição eusebiana garantira a vitória para os encarnados.Naturalmente a festa pelo país fora durou até às tantas. Na semana seguinte o Benfica selava em Braga a conquista matemática do campeonato, mas foi nesse 13 de Maio que a “aparição” João Pinto dizimou o Sporting (onde viria ainda a jogar).
Nos anos seguintes, outras prioridades e algumas épocas menos empolgantes fizeram-me falhar cinco derbys seguidos na Luz. Nem por isso deixei de ir ao futebol, acabando curiosamente por assistir, neste período, a alguns Sportingues-Benficas em Alvalade. Foi o caso do de 1994-95, em que um golo de Amunike afastou os encarnados da corrida ao título, numa noite (1 de Dezembro de 1994) em que Preud’Homme fez a melhor exibição que alguma vez vi a um guarda-redes, evitando uma humilhante goleada. Fui ao jogo pelo simples motivo de, por razões profissionais, ter ido esperar uns ingleses ao aeroporto, e não saber o que fazer com eles até à hora de um jantar que estava marcado para Cascais, no qual, mau grado a derrota, nos banquetearíamos com um repasto de luxo - por conta de outrem, claro. Eram judeus, e adeptos do Manchester United. Torceram pelo Benfica – ai deles se assim não fosse…- mas não gostaram de um jogo cheio de paragens e mau futebol. Desse Benfica conheciam, além do guardião belga, o avançado argentino Cláudio Cannigia.
Não arranjei bilhetes para a célebre final do "Very-Light". Disputou-se no Jamor em Junho de 1996. Benfica e Sporting tentavam desesperadamente salvar a época, pois o F.C.Porto arrancara firmemente para a sua caminhada rumo ao penta. Quando Mauro Airez (argentino que não fez história na Luz para além desse momento) marcou o primeiro golo do Benfica, Hugo Inácio, membro (que se tornou famoso) dos No Name Boys, atirou um very-light (expressão até aí praticamente desconhecida), que por fatalidade, incúria ou descuido, aterrou na bancada dos adeptos do Sporting, atingindo mortalmente um deles. Pintou-se de luto o derby nesse dia . O Benfica venceu por 3-1, com mais uma grande exibição de João Pinto, mas nem sequer houve entrega de taça. Voltei a Alvalade duas épocas depois, numa derrota tangencial com um golo do então estreante Beto, numa partida marcada pelas expulsões de Jamir e Hélder. Era Paulo Autuori o treinador benfiquista, e a equipa até ia bem no campeonato. Semanas mais tarde acabaria no entanto por derrapar, terminando muito mal a temporada já sob o comando de Manuel José. Neste jogo, tive de fugir de uma tremenda confusão à saída, tendo sido essa a única ocasião em que senti problemas de segurança em jogos com o Sporting – já com o FC Porto a história foi fértil em acidentes, que talvez um dia aqui vos conte.
Como não há duas sem três, no sábado de Carnaval de 1998 lá estava eu de novo em Alvalade para mais um clássico. Eram os melhores tempos de Souness, e a equipa encarnada levava várias vitórias consecutivas, sonhando ainda com uma aproximação ao FC Porto que não se chegaria a concretizar. Como à terceira é de vez, depois de duas derrotas seguidas, esta noite reservava-me uma retumbante vitória por 1-4, acompanhada de fantástica exibição. Poborsky (a estrela daqueles tempos), Sousa, Brian Deane e João Pinto (saído do banco após lesão) fizeram os golos - durante a segunda parte cheguei a pensar novamente nos 7-1. O médio Calado fez o jogo da sua vida e foi o melhor em campo, lembro-me também que o treinador do Sporting era Carlos Manuel – um dos meus ídolos de infância -, e um dos seus comandados era um ainda muito jovem Simão Sabrosa, que vi jogar nesse dia pela primeira vez. Tinha ficado em Lisboa à espera do jogo, mas ia passar o Carnaval a Évora, para onde me dirigi de imediato. A viagem, apesar de solitária, foi inesquecível, tal a enorme felicidade que juntava o início de um fim-de-semana prolongado, com uma tão robusta vitória do Benfica em Alvalade. Até cantei…Como muitas vezes acontecia em jogos fora de casa, assisti à partida no meio dos No Name Boys. A intensidade com que se vive o jogo no meio das claques é incomparável. Por vezes, ainda hoje gosto de o fazer.
Na bancada central estava um Vale e Azevedo rejubilante. Nunca acreditei nele, mas nessa ocasião achei bem que festejasse os golos do Benfica nas barbas de Roquette. Acho deplorável o comportamento elitista de alguns dirigentes, que parecem querer situar-se acima dos adeptos que é suposto representarem.
Este jogo abriu uma sequência de três vitórias consecutivas (e cinco vitórias em sete anos) do Benfica em Alvalade. Seguir-se-iam uma vitória por 1-2 com dois auto-golos de Beto em noite de denso nevoeiro, em jogo a que não pude assistir nem na televisão, e o célebre (e saboroso) 0-1 em que um livre de Sabry adiou a festa de um ansiado título, que o Sporting conquistaria na semana seguinte em Paranhos. Este apenas vi pela televisão, tal como o de 2002 em que aconteceria precisamente o mesmo, não fosse um penálti arranjado por Martins dos Santos proporcionar a Mário Jardel, no último minuto, o empate a um golo, depois do lituano Jankauskas ter aberto o activo para o Benfica já em plena segunda parte. Curiosamente seria o Benfica, na semana seguinte, a devolver o título que tinha retirado ao rival, vencendo o ainda campeão Boavista na Luz por 2-1, permitindo ao Sporting festejar no hotel. O seu segundo título em três anos.
O destino tem destas coisas. Estive seis anos sem ver um derby na Luz, e depois, num só mês, assisti a…dois. Para o campeonato, um lisonjeiro 0-0, para a taça uma derrota por 1-3, num jogo em que a chuva foi visita, e em que uma polémica qualquer inviabilizou a transmissão televisiva. Estávamos em Janeiro de 2000, e meses depois, esse forte Sporting (de Acosta, Di Franceschi, André Cruz, Duscher, Vidigal etc) conquistaria o tal título que via fugir-lhe havia dezoito anos.Os dois últimos derbys a que assisti no antigo estádio da Luz foram, cada um de sua maneira, absolutamente inesquecíveis. Um determinou a saída de Mourinho do Benfica para não mais voltar. Ao vencer por 3-0, com uma grande exibição, e com uma proposta do Sporting no bolso, exigiu, sem sucesso, a Manuel Vilarinho a renovação do contrato, batendo assim com a porta. Acabaria por não entrar em Alvalade pois, sabe-se-lá porquê, num impressionante serviço prestado ao clube, a claque Juve Leo boicotou-o, mobilizando-se para inviabilizar a sua contratação. Foi para Leiria e o resto da história é conhecido.Nessa noite, numa equipa onde despontavam Fernando Meira, Marchena, Miguel, Maniche entre outros, mas que ficaria pela primeira e única vez na história do clube em 6º lugar depois de somar três treinadores, João Tomás por duas vezes e Van Hooijdonk de penálti (que teve de ser repetido) marcaram os golos. Foi o regresso de João Vieira Pinto à Luz, e tal como Paulo Sousa e Rui Águas alguns anos antes, foi objecto de impressionante vaia sempre que tocava na bola. Neste caso bastante mais injusta, diga-se de passagem.
No último derby da velhinha Luz, foi o árbitro o protagonista. Duarte Gomes expulsou de forma exagerada o médio Andrade, assinalou um penalti duvidoso a favorecer o Benfica, perdoou um cartão vermelho a João Pinto, mas pior que tudo isso, quando, já nos minutos finais, o Benfica vencia por 2-0, viu algo que mais ninguém conseguiu ver: Jardel saltou com Marco Caneira (então de águia ao peito) e lançou-se espalhafatosamente para o relvado. Em vez de mostrar o respectivo cartão amarelo ao brasuca, apontou para a marca de grande penalidade perante a indignação geral. Jardel marcou, e dois minutos depois, em posição duvidosa, faria de cabeça o golo de um empate com sabor a derrota, e das amargas. Quem vencesse nesse dia dobraria o Natal na frente da classificação. O empate favoreceu os leões (também de Quaresma, Hugo Viana, João Pinto e…Paulo Bento), que se sagrariam campeões após 42 golos - dos quais 17 de penálti (!!!) - do então ainda Super, Mário Jardel.Esta foi a época da “equipa maravilha” de Luís Filipe Vieira, que chegado à Luz, contratou, em colaboração com José Veiga, e quase simultaneamente, Simão Sabrosa, Mantorras, Zahovic, Drulovic, Argel, Caneira entre outros. Mas só três anos depois o sucesso chegaria.
Nessa partida, perante o fecho das portas das bancadas de sócios (já lotadas), tive de entrar para o terceiro anel, do lado que nunca deixou de ser "novo", mesmo quando já estava em vias de ser demolido. Vi-me aflito para conseguir lugar, e foi já muito perto do apito inicial que me sentei na bancada. Vi o jogo rodeado de sportinguistas, mas nem mesmo assim essa deixou de ser uma das raríssimas ocasiões em que não resisti a lançar alguns impropérios ao juiz da partida. Saí do estádio como se me tivessem roubado a carteira.
Já que estive na despedida dos derbys na antiga Luz, não seria cortês não o fazer em Alvalade. Foi em 2002, também em Dezembro – muitos foram os Sportingues-Benficas natalícios – mas desta vez saí com uma vitória por 0-2, golos ainda na primeira parte de Zahovic e Tiago. Foi o segundo jogo de José António Camacho no Benfica – recebera o Sp.Braga uma semana antes – e o último de Pedro Mantorras, antes de um longo calvário de dois anos sem jogar. Julgo ter sido a primeira vez que vi jogar Cristiano Ronaldo mas, verdade se diga, não me impressionou muito. Demoraria a fazê-lo, e só a partir do Euro 2004 me rendi. Na mesma época, enquanto na Luz decorriam as obras, o Benfica recebeu os leões no Jamor. Perdeu por 1-2 um jogo que pouco contava para o desfecho da Liga. Marcaram Quaresma e João Pinto para o Sporting, enquanto Sokota reduziu para os encarnados já perto do fim. Fui assistir ao jogo, e esse foi, sobretudo, um dia para recordar todas as histórias que, em criança, o meu pai me contava sobre os grandes jogos então disputados no Estádio Nacional, tendo assim a oportunidade de viver um pouco dessas nostálgicas reminiscências.
Em Janeiro de 2004, no primeiro derby da nova Luz, o Sporting ganharia por 3-1. A derrota deveu-se, em larga medida, a Pedro Proença, que descobriu dois penáltis – um claramente inexistente, o outro duvidoso -, transformados por Rochemback e Sá Pinto, que, com golos de Silva e Luisão pelo meio, selaram o resultado, no dia em que o Benfica estreou o bonito equipamento centenário, do qual aliás guardo uma réplica. Meses mais tarde, em Alvalade, deu-se a vingança: na estreia do novo estádio do Sporting em derbys, um golo de Geovanni nos últimos instantes colocou o Benfica no segundo lugar e na pré-eliminatória da Liga dos Campeões, e levou os sportinguistas ao desespero. Treinava o Sporting …Fernando Santos, e Moreira foi o melhor em campo. Ao golo seguiu-se uma invasão de campo da claque leonina, que dirigentes do Sporting (entre os quais um tal de Bettencourt) e as forças policiais conseguiram a custo controlar. Lamentavelmente, não arranjei bilhete para este jogo, e vi-o pela televisão. Grandes alegrias tive eu nesses meses. Seguiu-se a vitória na Taça de Portugal diante de um FC Porto a poucos dias de se sagrar campeão europeu, e depois o inesquecível Euro 2004. Em Maio de 2005, enfim o título nacional.
2004-2005, época de grandes emoções, e em assisti a três derbys em poucos meses. O primeiro em Janeiro de 2005, em Alvalade a convite de um amigo que detinha dois cativos. Ganhou o Sporting por 2-1, com dois golos de Liedson - regressado depois de um polémico cumprimento de castigo frente ao Pampilhosa para a Taça, em jogo propositadamente antecipado para as vésperas do derby. Foi o dia em que Mantorras também regressou, curiosamente quase no mesmo local onde tinha feito o seu último jogo (o estádio é que já era o novo).
Ainda nesse mesmo mês de Janeiro, calhou em sorteio de Taça mais um Benfica-Sporting, agora na Luz. O Benfica, com muitas lesões, vinha de uma série de derrotas, a última das quais com o Beira Mar em casa. Seria campeão nesse ano, mas na altura poucos apostariam em tal eventualidade. Sentindo a importância da ocasião, e do meu apoio, repeti o que fizera em 1993 e no meio de uma virose, a poder de Brufens e Ben-u-rons, lá fui, com falhas respiratórias, para a Luz, onde nessa noite deveriam estar não mais de dois graus de temperatura. Deus recompensou-me e assisti a um dos melhores derbys da minha vida: 3-3, após prolongamento, um espectáculo empolgante, grandes golos e um happy-end no desempate por penáltis – Miguel Garcia atirou à barra, dando a passagem ao Glorioso. Não serviria de nada, pois meses mais tarde, no Jamor, um Benfica a ressacar do título conquistado, seria ultrapassado por um Vitória de Setúbal aguerrido, em jogo que também presenciei.Duas semanas antes, em Maio, dia de aparições, foi Luisão a lançar a mais profunda loucura que alguma vez vi num estádio de futebol, marcando o decisivo golo que viria a valer, uma semana depois, um sofrido e ansiado título.
Ao longo de mais de trinta anos de futebol, tive muitas alegrias e muitas desilusões. A ter de escolher um só momento, não hesitaria em escolher o título de 2004-2005 conquistado pelo Benfica depois de um longo jejum de onze anos. Na verdade não se trata de um momento, mas sim de vários. De várias semanas ou mesmo meses. De toda uma época, de uma fase de vida, ou mesmo de para lá dela. Se houve jogo decisivo para esse título, foi o derby das penúltima jornada.
Bastaria ao Sporting empatar na Luz para poder tranquilamente fazer a festa em sua casa no derradeiro jogo frente ao Nacional. Ganhando sagrava-se de imediato campeão. Havia ainda um elemento importante nesta partida: o Sporting disputaria quatro dias depois a final da Taça Uefa em sua casa, vindo então a perdê-la frente ao CSKA de Moscovo. A equipa de José Peseiro encontrava-se em grande momento de forma, podendo ganhar Liga e Taça Uefa na mesma semana, depois de uma longa sequência de brilhantes vitórias, emolduradas por exibições de fino recorte.O Benfica teria de ganhar para manter acesa a hipótese de, não perdendo depois no Bessa, se sagrar enfim campeão. Se o F.C.Porto, à mesma hora, não vencesse em Vila do Conde, o Benfica poderia festejar logo logo nessa noite.A atmosfera em redor deste derby foi algo de inesquecível. Dizia-se na altura, e com alguma razão, tratar-se do jogo do século. Não me lembro de facto de nas competições nacionais se ter jogado uma partida de tão dramática importância – mesmo os 6-3 de Alvalade em 1994 foram a cinco jornadas do fim, e o Benfica tinha sido campeão apenas três anos antes.Nessa manhã de sábado, viam-se inúmeras pessoas com as camisolas de ambos os clubes, e grupos de jovens entoando cânticos, mesmo em zonas bem longe do estádio, ou mesmo noutras cidades.Muita gente terá vivido esse dia com enorme ansiedade. Do lado do Benfica era a hipótese de pôr termo ao longo e angustiante jejum. Entre os leões tratava-se basicamente impedir que isso acontecesse, mas também de dar luz a uma época que entusiasmara fortemente a nação sportinguista. O estádio estava naturalmente esgotado com vários dias de antecedência. O ambiente no estádio era impressionante. Nunca em momento algum me recordo de ouvir tanto barulho num qualquer jogo, mesmo quando o antigo estádio da Luz levava 120 mil pessoas (talvez efeito da acústica). Ao mesmo tempo sentia-se uma enorme tensão. À medida que o tempo ia passando o nervosismo adensava-se. O meu coração resistia, o que me deixa absolutamente tranquilo quanto à inexistência de problemas cardíacos, tal a intensidade com que vivia o momento.O jogo foi naturalmente muito táctico. Na sequência da melhor jogada de todo o encontro, Simão atirou a milímetros do poste da baliza de Ricardo já a meio da segunda parte. Lembro-me de pensar que tinha ficado ali o título.
Faltavam sete minutos para os noventa quando o árbitro Paulo Paraty assinalou um livre perigoso a favor do Benfica. Petit bateu, a bola sobrevoou a área leonina e eis que surge lá no alto Luisão, que, saltando com Ricardo, desviou a bola para dentro da baliza do Sporting. A minha primeira reacção foi olhar para o fiscal de linha. Confesso que só depois de ver as imagens na televisão fiquei com a certeza de não ter havido falta. Quando vi Paraty a apontar para o centro do terreno e os jogadores do Benfica a festejarem efusivamente, até custei a acreditar. Foi a loucura generalizada no estádio. Dei comigo já fora do lugar, nas escadas, a saltar agarrado a pessoas que não conhecia de lado nenhum. Estoiram foguetes, lançam-se fumos e very- lights, 60 mil pessoas parecem tomadas por um acesso de histeria absoluta. Teria sido interessante que alguém tivesse observado as reacções àquele momento com frieza de cientista. Viam-se pessoas a chorar, pessoas ajoelhadas. Tudo!
Ainda havia seis minutos para jogar, mais os descontos. Mas o Sporting sentiu em demasia o golo sofrido. Beto foi expulso por protestos, sucederam-se as faltas, e praticamente não se jogou mais. As bancadas registaram seguramente os 10 minutos de maior euforia da história do estádio.O árbitro apitou para o final. Estava consumado o triunfo. O Benfica estava a um passo do título, que seria uma realidade oito dias depois, em mais uma noite inesquecível, desta vez vivida em pleno Estádio do Bessa.
Daí para cá, assisti a mais sete dos dez derbys disputados.
Uma derrota na Luz, em noite chuvosa, com Liedson em grande, surpreendeu todos em 2006. O Benfica estava em grande forma, levava várias vitórias consecutivas, tinha ganho no Dragão, e iria ganhar em Anfield Road poucas semanas depois.
Entrou para o clássico com muitos pontos de avanço de um Sporting moribundo, e chegou à vantagem por Simão ainda na primeira parte, podendo ter chegado ao segundo golo se Pedro Henriques tivesse assinalado um penálti de Tonel sobre Nuno Gomes (talvez um dia se escreva a história dos casos de arbitragem em derbys, tantos eles foram).
Uma segunda parte de luxo da equipa de Paulo Bento (estreara-se pouco antes), virou o jogo, o resultado e o campeonato. Os leões iriam disputar o título até às últimas jornadas, o Benfica de Koeman ir-se-ia apagar no plano interno. No dia seguinte havia neve por todo o país, como que a anunciar que algo estava a mudar.
Não estive lá, mas vi pela televisão a vitória em Alvalade por 0-2, com golos de Ricardo Rocha e Simão. Foi na época seguinte, cujo campeonato teria, todavia, o mesmo desfecho do anterior, e dos dois seguintes: FC Porto em primeiro, Sporting em segundo.
Três empates depois e chegamos a Abril de 2008. O último derby de Rui Costa. O último golo de Rui Costa. Jogava-se para as meias-finais da Taça de Portugal, e para a salvação de uma época que desde cedo tomou o azul e branco por cor predilecta. Voltou a chover, o que abençoou o derby, mas não o Benfica, então orientado por Chalana.
Com 0-2 (Nuno Gomes e Rui Costa) a 27 minutos do fim, tudo parecia decidido. O Benfica estava com um pé na final da Taça. Mas o futebol é o que é, e quando se trata de um derby, os seus desígnios são insondáveis. Até ao fim o Sporting marcou 5 golos (!), e virou do avesso o destino da partida. O golo de um uruguaio que não me apetece nomear foi insuficiente para evitar que o Benfica saísse porta fora da Taça.
O Sporting conquistaria o troféu, e meses depois, levantaria a Supertaça. Eis a importância que esses 27 minutos tiveram na carreira de Paulo Bento. Um minuto marca um derby, marca uma época, marca uma vida. Vivamo-los todos com a intensidade que merecem.
Deixando as filosofias, avanço a passos largos para a última época, na qual voltei a presenciar três derbys. Primeiro na Luz, numa das melhores exibições do Benfica de Quique Flores. Vitória clara por 2-0, e cheirinho a goleada na parte final do desafio.
Depois em Alvalade, derrota por 3-2. Grande golo de Liedson (sacana!, sacana!, sacana!), e superioridade clara do Sporting, numa altura em que Quique começava a mostrar-se um logro. Cheguei cedo a Alvalade, mas uma conversa com um amigo lagarto acabou por fazer o tempo passar, e quando caminhava para as bancadas deparo-me com a entrada das claques. Seguiu-se uma espera, ante um cordão policial (simpático, como normalmente acontece nestas ocasiões) em primeira fila, com cachecol do Benfica ao pescoço, apertado entre dezenas, centenas, milhares (pareciam mesmo era milhões), de lagartos. De todos os tamanhos, de todos os feitios, desde os mais belos exemplares fêmea, até aos mais orbiluscos exemplares macho. Uma praga.
Pior que isso, o tempo ia avançando, a organização não era muita, e ao apito inicial ainda estava cá fora.
A coisa lá fluiu, e só perdi os primeiros seis ou sete minutos. Quando Liedson marcou já estava sentado no lugar. Num lugar qualquer, tal a confusão.
A vingança seria servida um mês depois.Com o campeonato perdido, eliminados da Taça, os rivais lisboetas tinham na novel Taça da Liga a hipótese de salvar mais uma tristonha época.
Apuraram-se para a final, que iria ser disputada no Algarve. Lá fui eu atrás.
Aproveitei todo o fim-de-semana, mas nem pus os pés na praia. Visita ao hotel onde pernoitava a equipa – pertíssimo de casa -, depois do almoço uns quilómetros até Faro para ver um Farense-Benfica em Juniores, e enfim, Estádio.
A polémica marcou sempre a história dos derbys. Penáltis, expulsões, foras-de-jogo foram tempero que sempre deu sabor a estes pratos. Mas nunca se chegara tão longe.
Tudo aconteceu já perto do fim, quando o Sporting vencia por 1-0. Uma bola enviada para a área leonina, Di Maria e Pedro Silva fazem-se ao lance, e o defesa brasileiro corta com o peito. Lucílio Baptista, longe do lance, depois de consultas aos assistentes, assinala penálti. Reyes empate, e o Benfica ganha nos penáltis, levantando o troféu. Caiu o Carmo, a Trindade, o Camões e todas as redondezas. Foi uma semana de polémica, chegando ao absurdo de pedir a repetição do jogo, a anulação da prova e uma série de outros disparates. É o que dá o Benfica ganhar ao Sporting…
Eu lá estava, na bancada que ficava mesmo no enfiamento do lance, e, na altura, certezas não tive nenhumas. Como não tiveram dois sportinguistas que estavam ali bem perto. Só depois de ouvirem na rádio começaram a reclamar.
Ao todo vivi in loco, se não me falham as contas, 26 derbys entre Benfica e Sporting. Recordo-me, ao todo, de mais de noventa, contando todas as competições, e jogos particulares entre ambos. Cada um tem uma história, cada um tem os seus heróis, os seus casos. Sempre assim foi e sempre assim será.
No sábado vai escrever-se mais uma página desta bela história, que constitui indubitavelmente um dos baluartes do desporto no nosso país. Como um Lazio-Roma, um Inter-Milan, um Boca-River ou um Celtic-Rangers, este é um daqueles confrontos que faz perceber o significado da palavra rivalidade, que faz sentir que vale a pena ser adepto do futebol, e vibrar com estas emoções que nos manipulam, que nos agarram a alma.
Bastará olharmos para a maior parte das mesas de matraquilhos espalhadas pelo país (sobretudo a sul), para percebermos que Benfica e Sporting são os emblemas que melhor definem a portugalidade, como se de cara ou coroa de uma mesma moeda se tratassem, ou não fossem as suas as cores da republicana bandeira. Rivais desde que nasceram, vizinhos desde há muitas décadas, Benfica e Sporting sempre foram como que dois irmãos desavindos em luta pela herança. Uma luta sem tréguas, que a cada jogo se renova.
Um Benfica-Sporting ou um Sporting-Benfica nunca é pois apenas mais um. É sempre “aquele”, seja ele o do penalti do Jardel, o dos 7-1, o do golo do Luisão ou o do hat-trick de João Pinto. Trata-se de facto de um fenómeno apaixonante, onde para além do combate futebolístico, se verifica um interessante choque cultural e identitário. É sem dúvida o derby dos derbys em Portugal, e um dos mais significativos na Europa.
Que em campo os jogadores saibam merecer o peso deste confronto, é aquilo que se pode desejar para sábado. Depois...que ganhe o Benfica...
Viva o Derby!Viva o Futebol!
NOTA: Este texto é uma compilação, adaptada, revista e actualizada, de alguns posts relativos à rubrica "Jogos para a Eternidade".