Muito se tem falado nos últimos dias da crise de resultados benfiquista.
É sempre assim quando o maior e mais representativo clube português derrapa no caminho para os seus objectivos. São momentos em que, com profundos sentimentos de paixão ou antipatia, as análises nem sempre tomam o rumo da objectividade, perdendo-se no mar de emoções em que os adeptos do futebol normalmente navegam, e que o nosso espírito latino acentua marcadamente – oito ou oitenta, bestial ou besta, a fronteira é ténue e ultrapassável pelo mais ínfimo detalhe.
Sem pretender ser dono da verdade, há no entanto alguns factos que são importantes e que convém desde já lembrar.
1 –O Benfica não perde para o campeonato há 15 (!!) jogos
2- Trata-se da melhor equipa da segunda volta da nossa Liga, na qual conquistou, não esqueçamos, três pontos ao F.C.Porto.
3- Continua invencível em casa para as provas nacionais, e mesmo nos sete jogos internacionais que realizou na Luz, apenas foi derrotado por um super-Manchester United, e, diga-se, com um toque de injustiça.
4- Há muitos anos que os encarnados não tinham tantos pontos à 25ª jornada da Liga, contando inclusivamente com a época em que se sagraram campeões, título que, como sabemos, foi conquistado com uma das mais baixas pontuações de sempre, bem como com as épocas de Camacho e Koeman.
5- A equipa de Fernando Santos foi a que chegou mais longe nas competições europeias, de entre as seis portuguesas que nelas participaram, algo que acontece pelo segundo ano consecutivo.
6- Por muitos desequilíbrios que se detectem no plantel benfiquista, ele é, de entre os três grandes, o mais experiente e o que conta com mais internacionais A.
7- Apesar das consequências que se conhecem, a presente “crise” limita-se a três empates perfeitamente normais na nossa Liga, com F.C.Porto e Sp.Braga, e em Aveiro perante um Beira Mar em crescendo, para além de uma eliminação nuns quartos de final europeus, em nada humilhante, perante uma equipa da primeira metade da tabela da poderosíssima Liga Espanhola, e com um orçamento bastante superior ao do Benfica.
Posto isto, sem o esquecer, relativizando assim o momento que o futebol encarnado atravessa, importa perceber se algo podia ter sido melhor, e podia, e que erros foram cometidos, e foram-no.
Aliás, neste mesmo espaço se chamou a atenção para esses erros em devido tempo, e numa altura em que talvez a atenção do adepto comum se centrasse nas derrotas do F.C.Porto que, essas sim, permitiram alimentar um sonho que cedo parecera (e ficou) comprometido. Tanto
a propósito da venda de Ricardo Rocha, como lembrando que seria impossível com este plantel
apostar simultaneamente na Liga e na Uefa, aqui ficou premonitoriamente descrito aquilo que se adivinhava.
Fazendo um pouco de história, lembremos que a entrada de Luís Filipe Vieira no Benfica trouxe, para além de todos os aspectos de gestão económico-financeira que ficam de fora do tema em análise, uma nova equipa e um novo conceito ao departamento de futebol. Depois de alguns anos de desvarios, indisciplina, instabilidade e constantes saídas e entradas, por volta de 2001/ 2002 as aquisições de Mantorras, Simão, Zahovic, Caneira, Miguel, Tiago, seguidas na época imediata pelas de Petit, Nuno Gomes, Ricardo Rocha e depois ainda Luisão e Geovanni, conjuntamente com o lançamento de ex juniores como João Pereira e Manuel Fernandes, para além da confirmação Moreira, deram ao Benfica uma sólida base que viria a frutificar na conquista da taça de 2004 e no título de 2005. Libertando-se rapidamente da herança valeeazevedista (nem sempre da forma mais lúcida, como provam os casos de Marchena e Fernando Meira), o Benfica apostara, e bem, num núcleo duro de excelentes profissionais, capazes de a médio prazo constituir uma equipa de futebol hegemónica a nível nacional e prestigiada em termos internacionais. No fundo era o lema “devolver o Benfica ao Benfica” a ser tomado à letra. José António Camacho é uma figura a não esquecer neste processo, e seria bom que um dia pudesse voltar.
No dia 22 de Maio de 2005 o Benfica conquistava no Bessa um sofrido título nacional, que não era mais do que o lógico corolário do caminho seguido. Sentia-se, e eu disse-o várias vezes na altura, que se não acontecesse nesse ano seria num dos seguintes, pois a equipa que o Benfica estava a construir de base afigurava-se-me destinada ao sucesso – hoje quando olhamos para as convocatórias de Scolari, vemos os percursos de Miguel, Ricardo Rocha, Luisão, Tiago, Simão, Petit entre outros, percebe-se o que eu queria dizer na altura.
Via-se uma política desportiva coerente, própria de um clube em recuperação financeira (logo sem grandes devaneios aquisitivos), e que como tal tinha de apostar na coesão de um grupo sólido e ganhador, capaz de deixar a pele e o sangue em campo. O Benfica de Trappatoni era assim - uma equipa muito unida, muito lutadora, à qual faltariam mais duas ou três boas opções de banco, um ponta-de-lança eficaz e sobretudo experiência de vitórias e de grandes palcos, o que a presença na Liga dos Campeões, fruto do título alcançado, poderia trazer.
As contratações de Nelson, Anderson, Léo, Karagounis, Beto, Karyaka e Miccoli,
à partida para a temporada seguinte, dotaram o plantel encarnado das tais opções de que carecia. Tudo se conjugava para o clube da Luz assumir a hegemonia do futebol nacional, até porque o F.C.Porto pós-Mourinho, por variadas razões, mergulhara num mar de dúvidas e hesitações, que lhe retiraram força desportiva e institucional.
A contratação de Koeman não foi muito feliz, mas entende-se. Era um experiente ex internacional de grande prestigio na Europa, e vinha da escola holandesa onde fizera um bom trabalho no Ajax.
O Benfica começou muito mal a época, mas recompôs-se, e não fossem as sucessivas lesões teria chegado ao Natal em boa posição face ao título. A inesquecível vitória sobre o Manchester United na Luz selou o apuramento para os oitavos de final da Champions, corporizando mais uma etapa num projecto encarnado que catapultou a equipa, em poucos anos, da mais cinzenta e opaca melancolia desportiva, até à elite do futebol europeu onde escrevera as páginas mais nobres do seu brilhante historial.
Ainda não passou um ano e meio desde esse momento. É nele que centro o ponto de viragem na política desportiva do Benfica.
Suponho que os responsáveis do clube se tenham deslumbrado com tão rápida recuperação. O que é verdade é que ao contratarem uma mão cheia de jogadores caros, desnecessários e pouco qualificados, desvirtuaram por completo o projecto que dera origem ao título. Moretto, Marco Ferreira, Manduca, Marcel e Laurent Robert dividiram mais do que acrescentaram. O francês dizia-se ser dos mais bem pagos do plantel, mas a sua produtividade era irritantemente medíocre. O guarda-redes tirou extemporaneamente o lugar a Quim, acendendo o rastilho de uma polémica da qual não mais se libertou. Marcel pegou-se com Luisão e acabou dispensado. Marco Ferreira discutiu com Simão no balneário. Manduca nunca fugiu da mediania.
Por outro lado, o regular lateral Dos Santos era descartado, tal como o jovem internacional sub-21 João Pereira e o corpulento avançado Karadas. Miguel havia saído em circunstâncias complexas, fruto de uma abordagem deficiente ao seu caso por parte da direcção.
A surpreendente campanha na Champions League foi disfarçando o óbvio: o Benfica tinha perdido a alma que o tinha levado ao título. Por ter dito precisamente isto a um jornal foi Geovanni dispensado. O final da época passada exigia mudanças, exigia a recuperação da alma edificada por Camacho e aproveitada por Trap, que com a sua experiência leu muito bem (ao contrário de Koeman) o que se passava no clube.
Em vez de apostar no reforço da estrutura campeã, a direcção encarnada optou por lhe desferir mais uns golpes,
dispensando Geovanni e deixando sair de forma estranha e mal explicada o talentoso Manuel Fernandes. Ao contratar Miguelito, Manu, Paulo Jorge, Diego Souza e Kikin Fonseca, o Benfica, mais do que reforçar, desestabilizou. Katsouranis foi a excepção que confirma a regra, e Rui Costa é um caso especial.
Mais grave que as opções seguidas foi o timing e a indefinição das mesmas. Simão esteve para ser vendido até à segunda jornada do campeonato. Karagounis chegou a ser dado como dispensado e a caminho do AEK. Manuel Fernandes foi um caso que durou várias semanas. Tudo acrescido do facto de ter sido o Benfica o clube português com mais jogadores no Mundial da Alemanha, e de ter de participar numa pré-eliminatória europeia. Com estas indefinições teve o técnico de construir um modelo de jogo, sabendo-se por exemplo da importância que a presença ou não de um elemento como o capitão poderia ter no mesmo. Porque permitiu a SAD que se falasse tanto da venda de Simão, que não se chegou a concretizar ? O que aconteceria a esta equipa se tivesse ficado sem Simão e Karagounis ? Voltaria a um sexto lugar ?
Situemo-nos neste ponto. O que seria o Benfica com Geovanni, Manuel Fernandes, Dos Santos e Miguel, em vez das aquisições de Janeiro e Julho de 2006 ? Que tal este plantel ?: Quim, Moreira / Miguel, Luisão, Ricardo Rocha, Léo, Armando, Alcides, Anderson, Dos Santos / Petit, Manuel Fernandes, Katsouranis, Tiago, Rui Costa, Nuno Assis, Karagounis, /Geovanni, Miccoli, Nuno Gomes, Mantorras, Simão Sabrosa. Ter-se-ia perdido ou ganho dinheiro ? Será que o Benfica não estava nesta altura a festejar o tri-campeonato ? Se Derlei ganha 100 mil euros por mês porque não pagar esse valor a jogadores como Tiago ou Miguel ?
Já aqui a conclusão era uma só: mexera-se demais e sem critério no plantel que foi campeão.
Como se não bastasse toda esta sucessão de erros, em Janeiro último saíram da equipa Ricardo Rocha, Alcides, Fonseca, Karyaka e Diego, para além do castigo de Nuno Assis, inacreditavelmente aumentado por culpa exclusiva de uma má avaliação da situação por parte da SAD benfiquista.
Se o russo e o jovem médio brasileiro não tinham justificado as suas credenciais, se a saída de Ricardo Rocha foi resultante de uma excelente oportunidade de negócio, já a de Alcides não se entende, e a de Fonseca terá sido precipitada. Mas sobretudo não se percebe porque não foram contratados substitutos para os dois defesas que, por junto, asseguravam cinco posições diferentes (apenas veio um jovem desconhecido e, por felicidade, talentoso), e não foi reforçado o meio campo, em claro défice pelas saídas de Diego, Karyaka e pelo castigo de Nuno Assis. Nomes como Pellegrino, Gladstone, Andrés Madrid, Marcelo Mattos entre outros, não passaram de miragens para um clube que, eliminado da Champions e a oito pontos do F.C.Porto no campeonato, parecia já pouco acreditar nas suas hipóteses.
O resultado de tudo isto é um plantel extremamente desequilibrado, sem opções para muitos lugares, com apenas um lateral direito, com apenas três centrais, sem altenativas no meio campo, sem um goleador, sem um ala direito de qualidade, enfim, sem condições para tanta ambição. Um plantel que conta ainda, dentro dos seus elementos chave, com demasiados jogadores de utilização limitada (Rui Costa, Miccoli, Mantorras), e outros de rendimento demasiado irregular (Nelson, Anderson, Karagounis, Moretto, Paulo Jorge) e outros ainda de constante e estranho sub-rendimento na fronteira da nulidade absoluta (Nuno Gomes, Derlei, Marco Ferreira). Elementos como Petit, Luisão ou Simão surgem neste panorama como absolutamente imprescindíveis ao funcionamento da equipa, sentindo-se de forma imediata e devastadora cada uma das suas ausências - e foi na lesão de Luisão, também ela fruto de um erro clínico, que o Benfica começou a perder a época.
O presidente do Benfica, que gosta de gritar muito alto que vai ganhar este mundo e o outro, que explora até à exaustão "fait-divers" como a entrada no Guiness, que fala quando tem razão e quando a não tem, devia ponderar sobre a forma como a sua equipa de futebol se tem vindo a desfigurar, do dinheiro mal gasto em contratações falhadas (quase duas dezenas desde o título) e da forma como o clube não soube ou quis manter elementos de grande qualidade (Miguel, Tiago, Manuel Fernandes, Geovanni) e outros que eram importantes ao nível do balneário. A conversa dos “novos-heróis” ou da espinha dorsal não passou disso mesmo, pois a convulsão tem sido constante, e restam apenas pouco mais de meia dúzia de jogadores do plantel campeão.
Cada vez mais se cava um hiato entre a grandiosidade do clube (noutros aspectos nada há a apontar a esta equipa directiva) e a pequenez da sua equipa de futebol. Enchem-se estádios, geram-se audiências e receitas, batem-se recordes, entra-se no Guiness, fazem-se galas, entra-se na bolsa, mas os títulos, o mais importante para o clube, fogem.
Fernando Santos não tem culpa do plantel que lhe puseram nas mãos, e com o qual, fruto do seu benfiquismo e voluntarismo, julgou ser possível obter os títulos que toda a família benfiquista esperava e desejava.
Conforme já ficou dito na crónica ao último jogo, não podemos todavia esquecer que o engenheiro cometeu também ele alguns erros.
- Não foi Fernando Santos que se queixou em Novembro e Dezembro do plantel ser demasiado extenso ?
- Não poderiam jogadores como Manu, Paulo Jorge, Beto ou Miguelito, ter servido para fazer descansar, à vez, um ou outro titular neste ou naquele jogo ? Fernando Santos não fez isso, desgastando mais uns e desmotivando outros.
- Não era natural esperar que, recorrendo sempre aos mesmos jogadores e disputando três competições (fora a selecção), o Benfica acusasse este défice físico que toda a gente pressentia menos os técnicos?
- O engenheiro acusou uma enorme e total incapacidade para resgatar o moral dos jogadores quando o azar bateu à porta. A equipa não tem espírito ganhador e tem actuado sobre brasas.
- Alguns episódios disciplinares terão sido mal geridos. A começar pela célebre conferência de imprensa de Miccoli, e a terminar na utilização de Mantorras neste último desafio.
No balanço da temporada está contudo por provar que deva ser o técnico a “pagar a despesa”. Gostaria de ver Fernando Santos trabalhar com um plantel formado por si, sem saídas nem entradas imprevistas e inoportunas, sem indefinições, mas substancialmente reforçado. Para ter ambições reais correspondentes aos desejos de sócios e adeptos, e que passam naturalmente pela conquista do título nacional e por uma presença condigna na Europa, o Benfica precisa de entre cinco e sete reforços, mantendo todos os actuais titulares (com a eventual venda de um jogador no máximo).
Caso o Benfica consiga ainda assegurar o 2º lugar (o que não parece de momento muito provável), penso que Santos deve continuar. Se com isso alguma estabilidade emocional regressasse à Luz, e a expectativa da participação europeia permitisse abrir os cordões à bolsa, sem pré-eliminatórias nem mundial, talvez fosse enfim possível ao engenheiro demonstrar a sua capacidade.
Caso o apuramento directo para a Champions não seja obtido, haverá poucas condições objectivas e subjectivas para Fernando Santos se manter na Luz. Ao primeiro desaire teria o mundo a cair-lhe em cima, a pressão recrudesceria e ninguém beneficiaria com isso.
Portanto o técnico do Benfica tem duas semanas para mostrar se merece ou não continuar a orientar o seu clube do coração.