JOGOS PARA A ETERNIDADE (15) - Europeu de 1984

Inicia-se no próximo sábado o 13º Campeonato da Europa de Futebol.
Respeitando rigorosamente a periodicidade com que foi instituído – de quatro em quatro anos -, desde 1960 que esta competição foi progressivamente ganhando força até se transformar naquilo que é hoje: pouco menos que um verdadeiro Mundial, havendo até quem defenda ser o Euro mais exigente que a própria prova da FIFA, dado o grande equilíbrio entre as selecções normalmente apuradas.
Das edições anteriores recordo-me de sete, precisamente desde 1980, tinha eu dez anos.
Apesar de ter uma memória difusa de um Bayern de Munique-Benfica disputado em Março de 1976, não me recordo, nem ao de leve, do Europeu disputado três meses depois em Belgrado, o tal em que Panenka inventou uma forma diferente de marcar penáltis, que Postiga e Zidane décadas depois repetiriam com sucesso. O primeiro campeonato que me lembro, e já razoavelmente bem – vivera já antes as emoções do Mundial de 1978 -, é pois o de 1980 disputado numa Itália mergulhada no “Totonero”, uma espécie de Calciocaos dos anos setenta. Não tive a noção na altura, mas vim a perceber depois ter sido esse um dos piores europeus de sempre. Estádios vazios, futebol defensivo, violência nas bancadas, de nada faltou ao Itália 80. Venceu a Alemanha de Rummenigge, Schuster e Matthaus (que se estreava), numa final pobre diante de uma improvável Bélgica.
O Europeu que mais me marcou foi obviamente o de 2004 - pela carreira da selecção nacional, pelo inolvidável ambiente de festa gerado no país, e pelo facto de o ter vivido de perto com presença em vários estádios. Mas o primeiro Europeu que me tocou verdadeiramente, como de resto a toda a minha geração, foi o de França em 1984, no qual a equipa nacional conseguiu uma participação brilhante, ficando a apenas cinco minutos de uma final, que durante mais de setenta anos fugiu ao futebol português. Este épico torneio constituiu a segunda presença da história da selecção nacional numa grande prova internacional, depois da saga dos “Magriços” dezoito anos antes. A qualificação para a fase final foi naturalmente difícil, para mais num grupo fortíssimo do qual faziam parte Polónia (terceira classificada no Mundial anterior) e a URSS, finalista de três (60, 64, 72) das seis edições até aí disputadas. A Finlândia fechava o grupo e na altura não tinha futebol para entrar nas contas do apuramento.
A chave da qualificação portuguesa acabou por ser a dupla vitória frente aos polacos (2-1 numa bela tarde de domingo na Luz e, sobretudo, 1-0 numa noite de nevoeiro em Chorzow com um golo de Carlos Manuel), que permitiu chegar à última jornada, em casa frente à URSS, em condições de passar, mesmo depois da copiosa derrota em Moscovo por 5-0, que custou a substituição do seleccionador Otto Glória por uma comissão técnica constituída por Fernando Cabrita, António Morais, Toni e José Augusto. No último jogo, em Novembro de 1983 perante um Estádio da Luz praticamente cheio, um golo solitário de Jordão, na transformação de uma grande penalidade bem cavada por Chalana, pôs o país em festa. Dezoito anos depois dos “Magriços”, dois anos antes de “Saltillo”, aí estava Portugal, com um conjunto brilhante de jogadores, mas uma organização fora de campo ainda rudimentar, a disputar uma prova importante diante dos melhores.Efectivamente a selecção nacional de então tinha grandes jogadores. Bento, Carlos Manuel, Jaime Pacheco, Diamantino, Chalana, Nené, Gomes e Jordão, eram apenas alguns dos nomes que se destacavam de toda uma geração que nunca tinha tido tão boa oportunidade para brilhar - pelo menos ao nível de selecção pois Benfica e F.C.Porto tinham sido finalistas europeus pouco antes. Faltava todavia ao futebol português uma estrutura técnica e dirigente que pudesse garantir o rigor de um trabalho sólido e coerente. Neste âmbito tudo era ainda muito amador, funcionando na base da carolice de uns quantos, situação que se revelou devastadora dois anos depois em Saltillo.

Neste Europeu terão desde logo surgido alguns problemas, nomeadamente fruto da extrema rivalidade já então existente entre Porto e Benfica, com a agravante de a quase totalidade dos seleccionados pertencer a esses dois clubes (ao contrário do que se veio a verificar mais tarde, com a emigração massiva dos melhores jogadores portugueses) e não existir uma liderança técnica reconhecida por todos. Na verdade António Morais era o técnico dos jogadores do F.C.Porto, enquanto Toni era o dos do Benfica, e Cabrita apenas procurava apaziguar os ânimos.
Nos jogos de preparação antes da prova ficou no ar alguma preocupação. Derrota no Jamor por 2-3 com a Jugoslávia, e empate no Luxemburgo adensaram duvidas sobre o que podia Portugal fazer num grupo em que teria de se haver com Espanha e Alemanha, para além da estreante Roménia.
Mas no primeiro jogo, diante dos germânicos, a alma portuguesa gritou bem alto que estava disposta a entrar para a história. Contra os campeões europeus e vice-campeões do mundo, Portugal impôs um empate a zero, num jogo em que até desfrutou de algumas boas ocasiões para marcar. Para a época, empatar com a Alemanha era um estrondoso êxito, e abria as melhores perspectivas.
A equipa apresentada, num cauteloso 4-5-1, seria repetida no segundo jogo, e teria poucas alterações até final. Bento, João Pinto, Lima Pereira, Eurico, Álvaro, Carlos Manuel, Jaime Pacheco, Frasco, Sousa, Chalana e Jordão. Além destes onze, só Gomes e Diamantino viriam por uma vez a alcançar a titularidade.
Faltei às aulas para ir ver o jogo a casa. O ano lectivo estava no fim, tinha faltas para dar, e aproveitei-as até aos limites nos dias dos principais jogos da tarde. Julgo que as férias grandes terão começado durante a competição.
A sensação de ver aqueles equipamentos vermelho-verde vivos, novinhos em folha, a entrar no estádio de Estrasburgo, numa era em que a televisão a cores ainda era uma jovem novidade, ficará para sempre marcada na minha memória. Não sou do tempo do Mundial 66, e aquela era a primeira ocasião em que podia ver a selecção do meu país, pela qual sempre nutri grande carinho, a jogar num grande palco.
No segundo jogo, disputado em Marselha num domingo de intensa trovoada no nosso país – que durante a tarde me deixou em pânico por faltar a electricidade, colocando em risco a possibilidade de ver o jogo -, a nossa selecção colocou-se em vantagem perante a Espanha já na segunda parte com um magnífico golo de Sousa, mas não conseguiu segurar o resultado, pois o temível goleador Santillana, num ressalto dentro da área, acabou por estabelecer a igualdade. Chalana realizou uma exibição soberba, começando neste dia a destacar-se verdadeiramente como a grande estrela da equipa portuguesa.
Portugal entrava para a última jornada com a necessidade imperiosa de vencer a Roménia, e sob um manto de críticas pela atitude demasiado defensiva adoptada nos primeiros jogos, sobretudo diante da Espanha, onde se esperava mais alguma audácia. Muitas das críticas passavam pela não utilização de Fernando Gomes no ataque, e pelo reforço do meio-campo com cinco médios, na altura considerado um total exagero.
Para o jogo com a Roménia em Nantes, a comissão técnica fez a vontade aos críticos, colocando Fernando Gomes ao lado de Jordão no ataque luso. Teria pois que sair um médio, e aí é que o caldo se entornou. As pressões de F.C.Porto e Benfica eram muitas, o balneário estava totalmente dividido em dois, e a dúvida que se punha era entre Carlos Manuel ou Jaime Pacheco. Decidiu-se pelo primeiro.

As coisas começaram mal, com a lesão de Chalana, já muito claramente o jogador em melhor forma, logo na alvorada do desafio, e que o obrigou a sair de maca. Temeu-se o pior, mas o pequeno genial ainda reservava muito futebol para esta prova.
Seria outro benfiquista, Nené, saltado do banco já na fase de desespero, a marcar o golo decisivo a nove minutos do fim da partida. Cruzamento do lado direito, e Nené com o sentido de oportunidade que lhe era característico, atirou à meia volta para dentro da baliza romena, ponde em delírio os emigrantes portugueses presentes – nesse tempo poucos eram os que se poderiam deslocar de Portugal a França para ver futebol. Ao mesmo tempo, no Parque dos Príncipes, um golo do central Maceda em cima do minuto noventa, eliminava surpreendentemente a Alemanha, guindando assim os dois países ibéricos à presença nas meias-finais.
Nessa mesma quarta-feira, outro tema dominava a actualidade do país. Tinha sido desmantelada a rede bombista FP-25, e detidos os seus alegados responsáveis, entre os quais o até então prestigiado Otelo Saraiva de Carvalho. A passagem de Portugal às meias-finais não terá pois merecido o destaque mediático que os dias de hoje normalmente conferem a feitos dessa natureza. Ainda assim foi causa de grande felicidade de todos os que de perto viviam o fenómeno desportivo, e a presença da selecção no Euro. De certa forma era o reviver da saga dos “Magriços”, agora com o pseudónimo de “Patrícios”.
Mas este Euro estava destinado a ser de algum modo acidentado para mim. Depois de ter de faltar às aulas no primeiro jogo, depois de me ver sem electricidade em casa poucas horas antes do segundo, eis que no sábado das meias-finais frente à anfitriã França partiu-se a antena da televisão.
Foi de grande angústia toda essa tarde, sem saber em que condições poderia ver o jogo. Acabei por o ver a preto e branco, e com o ecrã cheio de “chuva”. Mas vi-o.
A França, além de jogar em casa, era a melhor equipa da prova. Dispunha de uma equipa formatada desde o Mundial de 1978, e que no Espanha 82 atingira as meias-finais, sendo apenas derrotada, de forma dramática, no desempate por penáltis frente à Alemanha, numa noite de Sevilha que os franceses demoraram dezasseis anos a digerir. A equipa gaulesa, orientada pelo experiente Michel Hidalgo, contava com um super-Platini – hoje presidente da Uefa - na sua melhor forma de sempre, e que aliava uma capacidade técnica fora do comum, com uma notória liderança em campo e com uma veia goleadora impacável. O “dez” da Juventus marcou nove golos em cinco jogos (!), e foi a grande figura da prova, pedindo meças àquilo que Maradona viria a fazer dois anos depois no Mundial do México, onde de resto Platini voltou também a brilhar.
Para além de Platini, brilhavam no meio-campo francês Giresse e Tigana, dois artistas que eram protegidos pelo operário Luís Fernandez. Um dos melhores meio-campos de que há memória no futebol europeu das últimas décadas.
O jogo com Portugal no Velodrome de Marselha foi inesquecível, e ficará na história como um dos melhores de sempre dos campeonatos da Europa. Foi decidido no último minuto do prolongamento, depois de duas horas de grande emoção, intensidade e espectáculo.
Na equipa portuguesa deu-se a entrada de Diamantino para o lugar de Gomes, e de Jaime Pacheco para o lugar de Carlos Manuel, trocas mais uma vez envoltas em azedas polémicas dentro do grupo. Veja-se a preocupação que havia com os equilíbrios entre Benfica e F.C.Porto, sem a qual é difícil imaginar onde poderia ter chegado este conjunto de brilhantes jogadores portugueses.
Até meio da segunda parte do tempo regulamentar o domínio foi totalmente francês. Num livre directo em que todos esperavam o remate de Platini, Domergue diparou para o fundo da baliza de Bento pouco depois dos vinte minutos de jogo. Daí em diante assistiu-se a um vendaval de ataque da equipa da casa, com o guardião do Benfica a realizar seguramente uma das melhores exibições da sua carreira.
Como quem não marca sofre, Portugal acabaria por chegar ao empate, contra a corrente do jogo, após um cruzamento primoroso de Chalana, ao qual Jordão, sozinho na área, correspondeu com um cabeceamento perfeito batendo Joel Bats. Por portas e travessas, estava reposta a igualdade que nos levaria a um inesperado prolongamento, não sem que antes Fernando Gomes, entrado no segundo tempo juntamente com Nené, tenha tido nos pés a oportunidade de tudo decidir.
No prolongamento, dado o adiantamento dos franceses, o jogo tornou-se cada vez mais partido e espectacular. Ainda nos primeiros quinze minutos, Chalana entra em dribles sucessivos pela direita, cruza para o segundo poste, onde Jordão, falhando aparentemente o remate, acaba caprichosamente por colocar a bola no ângulo superior da baliza francesa, colocando Portugal em vantagem, e calando o Velodrome.
Contra todas as previsões e expectativas, Portugal via-se a poucos minutos de alcançar o momento mais alto da sua história futebolística, com uma presença numa final de uma grande competição internacional.
Ainda antes da mudança de campos, Nené, desmarcado uma vez mais por Chalana, isolou-se diante de Bats, e por muito pouco não fez o 1-3 que arrumaria a questão.A segunda parte do prolongamento foi penosa para Portugal, que sem capacidade física para resistir à avalanche gaulesa foi perdendo bolas sucessivas e foi-se remetendo às imediações da sua área. Faltavam apenas seis minutos para segurar a magra vantagem, quando Domerge, novamente ele, aproveitou uma confusão na área portuguesa para repor a igualdade. O lateral-esquerdo Domergue, que nem era normalmente titular, marcou nessa tarde-noite os dois únicos golos da sua carreira internacional.

Tudo parecia então ir para penáltis, mas a força dos franceses, impulsionados por um público cada vez mais entusiasta, acabou por lhes valer o terceiro golo, a um minutos do final. Tigana arrancou pela direita, foi deixando adversários prostrados no relvado, e cruzou para a pequena área onde Platini não perdoou, colocando a França na final.
O desespero tomou conta dos portugueses. A imagem de seis ou sete jogadores estatelados na relva é a prova evidente de que a diferença neste jogo se acabou por fazer pela capacidade física e ritmo competitivo das duas equipas. Seja como for, perder uma oportunidade daquelas para disputar uma final, daquela forma, foi absolutamente dramático. Esta derrota foi das maiores tristezas que tive com a selecção nacional.
A poderosa equipa francesa seguiu para a final, onde venceria a Espanha com alguma sorte – e ajuda do árbitro. Olhando à competição no seu todo, foi a França a melhor equipa. Portugal deixou boa imagem, mas não estava ainda, por diversos motivos, à altura de lutar por um título.
Este jogo e este Europeu ficaram contudo a marcar brilhantes páginas da história da selecção nacional.Chalana e Jordão foram os que mais alto brilharam, conseguindo o extremo benfiquista uma milionária transferência para o Bordéus, onde com Tigana, Giresse e outros, chegaria às meias-finais da Taça dos Campeões da época seguinte. Depois, as lesões comprometeram-lhe o resto da carreira.

2 comentários:

Anónimo disse...

A França... o nosso eterno carrasco. Desde 84 até 2006, não esquecendo 2000, acabaram sempre com o sonho de uma final lusa. Será este ano que a história vai mudar? Esperemos que sim pois só os podemos encontrar na final...

LF disse...

França e Itália sempre foram países com os quais o nosso futebol nunca se deu bem.
Ultimamente a Espanha, nomeadamente em termos de clubes, também tem sido carrasco (Benfica eliminado em três anos consecutivos por Barça, Espanhol e Getafe).
Nem valerá a pena falar da Grécia, autentica besta negra dos últimos anos.

Felizmente, a nossa selecção não apanhará nenhum destes países até à final, tal como Holanda, Russia, Suecia e Romenia.

Só foi pena a Roménia não ter saido no grupo B em lugar da Alemanha, como o sorteio podia ter permitido. Mas o bom é inimigo do óptimo...