O passado é sempre mais romanceado por quem não o viveu, e apenas conhece os momentos heroicos (aqueles que ficam nas vitrinas da memória), ignorando o quotidiano de cada tempo histórico. Ora à excepção do tempo do Eusébio (doze anos singulares nos 120 da história do clube da Luz ou de qualquer outro clube português), não creio que o Benfica tivesse alguma vez sido aquilo que hoje dele se exige: que ganhe todos os campeonatos, que se apresente forte na Europa, que esmague os rivais, que acerte todas as contratações, que, em suma, seja perfeito.
Na velha antiguidade dos Campeonatos de Portugal, FC Porto e Sporting eram mais fortes e ganhadores. Depois, por exemplo entre 1945 e 1955, o Benfica venceu apenas um campeonato e nem sequer tinha estádio (era o clube dos pobres e desfavorecidos do salazarismo, que andava de casa às costas a mendigar ajuda aos associados). Pouco antes de Eusébio se estrear, o Sporting era dominador e tinha dez títulos nacionais para nove dos encarnados. Chegámos então ao tal período impar, com o "Pantera Negra" e sem FC Porto (entre 1959 e 1978 os nortenhos não só nada ganharam, como nem sequer davam luta, chegando a ficar em 9º lugar), que mudou toda a história do futebol português. Mais tarde, entre 1977 e 1994, o FC Porto, independentemente dos métodos utilizados, assumiu-se como mais vitorioso que os encarnados (nesse período, oito títulos para sete). Entretanto vieram sucessivamente a gestão optimista e gastadora de João Santos, a gestão desorganizada e irresponsável de Jorge de Brito e a gestão incompetente e ziguezagueante de Manuel Damásio, que deitaram o Benfica para a maior crise do seu historial e para os braços do caos, do populismo e da corrupção mais descarada personificada por João Vale e Azevedo. Foi o chamado "Vietname", cujo trauma só pode ser entendido por quem por ele passou. Infelizmente, foi o meu caso - a agravar, numa altura em que, por circunstancias da vida, vivia mesmo ao lado do Estádio da Luz.
Nesse período, que mantenho bem presente na memória, confesso que cheguei a pensar (e não só eu) que o Benfica ia a caminho de uma espécie de belenensização, e não voltaria nunca a ganhar campeonatos - tal chegou a ser a desproporção de meios, de créditos e de futuros. Não havia dinheiro, não havia instalações, não havia organização, não havia activos, não havia credibilidade, não havia modalidades, não havia mística, não havia rumo, enquanto, paralelamente, todas as estruturas subterrâneas do futebol português eram capturadas por um FC Porto organizado, metódico, laborioso, e para quem os fins justificavam todos os meios.
Quando hoje se invoca, depreciativamente, estupidamente, ignorantemente, o termo SLV2003, é caso para dizer, como Jesus Cristo: perdoem-lhes porque não sabem o que dizem.
Foi o tal SLV2003 que modernizou o clube, o dotou de estruturas e condições para competir, o recentrou num futebol que entretanto já era outro, muito mais mercantilizado, muito mais profissionalizado, muito mais dependente da geração de receitas e de áreas como a comercial e a financeira, isto após o Tratado de Maastricht, a criação da Liga dos Campeões e a Lei Bosman, comboio que o Benfica estava em sérios riscos de perder para sempre.
A exigência é benéfica se exercida com realismo. Caso contrário torna-se contraproducente, não permitindo um crescimento sustentado, e naturalmente feito de altos e baixos, de avanços e recuos, obrigando a começar tudo do zero a cada momento, criando ruído, descrença, desunião, e potenciando um ciclo autodestrutivo utilizável por uma comunicação social também ela muito diferente, para o bem e para o mal, da do século XX, e por rivais que não hesitem em explorá-la em seu benefício.
O Benfica está bem. Mesmo muito bem. Nunca teve tantos sócios, nunca vendeu tantos lugares cativos, nunca gerou tantas receitas, nunca praticou tantas modalidades, nunca teve tão boas infraestruturas, e, que me recorde, nunca teve uma situação económico-financeira tão mais estável e robusta que a dos rivais directos - o que o dota de uma capacidade de investimento sem paralelo no país. Desportivamente, e só no futebol profissional, nos últimos onze anos o Benfica ganhou seis campeonatos, o FC Porto três e o Sporting dois; e vem de três anos consecutivos nos Quartos-de-Final da provas da UEFA, duas delas na Champions League, algo que não conseguia desde a década de sessenta. O clube da Luz tem hoje condições invejáveis face aos seus concorrentes, e essas condições, como diria António Guterres, não nasceram do vácuo.
Tudo isto tem de continuar s ser alimentado com vitórias. Mas não se pode deitar fora o menino com a água do banho. É preciso perceber, por exemplo, o que fez o Benfica efectivamente perder o último Campeonato , e não confundir razões desportivas e circunstanciais com razões estruturais ou de fundo. É preciso saudar a aposta no desporto feminino, que dá ao pioneiro Benfica um domínio esmagador numa área cuja importância só um dia mais tarde será relevada. É preciso valorizar o investimento nas modalidades de pavilhão (onde ninguém ganha mais do que o Benfica) e no projecto olímpico (praticamente só atletas benfiquistas como Pimenta, Ribeiro ou Pichardo, lutarão por medalhas em Paris). Obviamente não serão os rivais a expressar essa valorização.
Hoje há muito mais informação disponível, mas a inteligência humana é a mesma que inventou a roda. Toda essa informação, multiplicada e distorcida por variadíssimos e outrora inexistentes canais, torna-se muitas vezes mero ruído. O Benfica, como clube mais popular, acaba por ser também o mais exposto ao folclore mediático, e à estupidez natural que brota das redes sociais, bem como a um modus vivendi que se traduz em dizer mal de tudo e de todos, e exigir tudo a todos e já, excepto, naturalmente, aos próprios.
É uma pena que uma facção dos adeptos não entenda nada disto, e embarque nessa onda negativista. E se, nos tempos antigos, quando o presidente do clube ia lá uma vez por semana assinar os cheques, a retórica destrutiva, ou não existia, ou resumia-se à tasca do bairro, hoje tem um efeito potenciado e extremamente nefasto para a estabilidade presente e futura do clube. E nem falo dos casos, que também existem, de gente ressabiada por, ou ter cessado ligação ao clube, ou pretender tê-la sem o conseguir.
A mim, nunca me irá pesar a consciência. Sofro pelo Benfica desde que me conheço, já chorei pelo Benfica de tristeza e de alegria - e se chorei de tristeza por várias razões na vida (morte de familiares ou outras situações pessoais), por alegria, meus amigos, só o Benfica me fez soltar lágrimas, tal a paixão que lhe devoto. Gastei e gasto muito dinheiro para acompanhar o clube (já não vivo perto do estádio, nem sequer em Lisboa), nunca tendo dele recebido um cêntimo - embora colabore semanalmente com o jornal, desde 2008, a título 100% gracioso. Pode haver gente tão benfiquista quanto eu,. Mais do que eu, garanto a pés juntos que não há.
Obviamente isso não faz de mim dono da razão. Mas nada faz de nenhum indivíduo ou grupo de indivíduos donos da razão, pelo que todos temos o dever de respeitar as maiorias. E não tenho dúvidas que a maioria dos sócios e adeptos do Glorioso sabe valorizar o clube que tem, e, mesmo não gostando de perder um campeonato, não dispara tiros que ferem a sua própria alma - como infelizmente algumas minorias, que se julgam vanguardas esclarecidas, fazem quase diariamente por aí. Perdoem-lhes, pois não sabem o que fazem.