JOGOS PARA A ETERNIDADE (11) - Benfica-Manchester United, 2-1 / 2005


Quando se aproxima mais uma jornada europeia de elevadíssimo grau de dificuldade para o Benfica, é talvez o momento de recordar uma outra, de características similares, que redundou numa noite de glória verdadeiramente inesquecível. Falo do Benfica-Manchester United de 2005, que foi, sem dúvida alguma, um dos jogos da minha vida, e o qual só não foi antes chamado a esta rubrica de forma a manter o distanciamento temporal que permita evocá-lo como uma verdadeira recordação do passado. Decorridos alguns anos, parece ser altura para lembrar essa deliciosa noite.
Estávamos na última jornada da fase de grupos da Liga dos Campeões, onde o Benfica se encontrava depois de uma ausência de alguns anos. Para os lados da Luz, estava ainda bem viva a conquista do título nacional meses antes, que interrompera onze anos de jejum, e levara o clube de volta aos principais palcos do futebol europeu. Apesar de toda a euforia do título, que ainda envolvia os adeptos, poucos apostariam que o Benfica conseguisse ultrapassar esta fase, sobretudo depois da derrota em casa com o Villarreal - à partida, o seu principal adversário, tomando como seguro que ao todo poderoso Manchester United nunca fugiria um dos lugares de apuramento.
O Benfica iniciou a prova com uma preciosa vitória sobre o Lille na Luz, obtida com um golo de Miccoli no último minuto. Depois foi derrotado em Old Trafford, empatou em Villarreal, perdeu em casa com os espanhóis, e foi empatar a Paris com o Lille. Chegou à derradeira jornada em último lugar, com 5 pontos, face aos 6 de Lille e Manchester United, e aos 7 do surpreendente líder Villarreal.
Só a vitória interessava, e permitia, sem quaisquer dependências, a qualificação. Qualquer outro resultado eliminava sumariamente o Benfica da prova rainha, e um eventual empate nem sequer garantia a repescagem para a Taça Uefa. O Manchester não podia perder, jogando também nessa noite o apuramento, depois de uma fase de grupos bastante sinuosa, na qual perdera já nove pontos em cinco jogos. O panorama era pois de autêntico mata-mata, e, para agravar, o Benfica tinha de o enfrentar com vários jogadores lesionados, tais como Manuel Fernandes, Ricardo Rocha, Karagounis, Miccoli, e, sobretudo, o capitão Simão Sabrosa. Era o que se poderia chamar, uma missão impossível.
Mas há noites em que algo de mágico parece acender as velas da nossa esperança. Fui para o estádio bem cedo, e embora, como quase toda a gente, não visse forma de o Benfica conseguir ultrapassar o tremendo obstáculo que tinha diante de si, sentia por dentro uma estranha fé, capaz de transmitir uma difusa sensação de que era possível ocorrer o verdadeiro milagre com que sonhava. Afinal eram onze contra onze, e a bola seria, com toda a certeza, redonda.
O ambiente em redor da Luz era, naturalmente, o dos grandes jogos. A lotação estava esgotada havia semanas, e a tensão nervosa era electrizante.
O Benfica alinhou com Quim, Alcides, Luisão, Anderson, Léo, Nelson, Petit, Beto, Nuno Assis, Nuno Gomes e Geovanni, enquanto o Manchester United fazia actuar Van der Sar, Neville, Ferdinand, Silvestre, O’Shea, Smith, Fletcher, Scholes, Ronaldo, Rooney e Van Nistelrooy. Os técnicos eram Ronald Koeman e Alex Ferguson.
Desde que o jogo teve início, logo se percebeu que Cristiano Ronaldo não seria poupado a assobios. Cada vez que o jovem português tocava na bola, sessenta mil pessoas faziam um barulho ensurdecedor, factor que terá sido responsável pela pobre exibição que o puto maravilha – ainda relativamente pouco experiente - realizou nessa noite. Ao ser substituido, Ronaldo, de cabeça perdida, faria um gesto indelicado para as bancadas, o que lhe viria a valer um castigo. Estou em crer que se hoje voltasse à Luz, tudo seria perdoado.
Mas as coisas não começaram nada bem para o a equipa portuguesa, muito pelo contrário. Logo aos seis minutos, uma falha de marcação permite um cruzamento para a pequena área, onde Paul Scholes bateu Quim de forma pouco ortodoxa – a bola apenas passou uns centímetros da linha de golo, mas os suficientes para o Benfica se ver em desvantagem no marcador. Se as dificuldades já eram muitas, um início de jogo tão infeliz parecia ser o pronuncio de uma noite de desilusão, ainda que, com as expectativas tão baixas, essa palavra fosse até de algum modo excessiva. Quaisquer palavras que utilizássemos, o que parecia certo era o natural apuramento dos Red Devils, e a eliminação dos encarnados da Luz.
Recordo bem a forma como, impulsionados pelas claques, os benfiquistas de imediato apoiaram a equipa, fazendo-lhe sentir que tudo ainda era possível. Terá sido um dos jogos em que me recordo de um apoio mais vibrante vindo das bancadas. A Luz, nesse dia, foi mesmo um verdadeiro inferno.

A reacção dos jogadores foi espantosa. Desde esse minuto seis, até ao final da primeira parte, assisti a melhor exibição do Benfica dos últimos dez anos. Segurança defensiva, critério na troca de bola, ataques rápidos e perigosos. Todos pareciam capazes de comer a relva e engolir a bola. Os golos teriam de surgir.
E surgiram mesmo. Primeiro Geovanni – cirurgicamente aproveitado como ponta-de-lança -, a cruzamento de Nelson. Era o empate, era a devolução da esperança à Luz, repondo tudo na estaca de partida. Pouco depois seria a vez do improvável Beto – mal amado pelos sócios – rematar de fora da área, na sequência de um ressalto, batendo sem apelo o gigante Van der Sar. Parecia impossível, mas o Benfica tinha consumado uma cambalhota no resultado. Mas faltava ainda muito, muito tempo.
Van Nistelrooy e Ronaldo têm boas oportunidades, mas à beira do intervalo, em mais um lançamento para as costas da defesa inglesa, o veloz Geovanni escapa-se, isola-se, e acaba rasteirado mesmo sobre a linha limite da área. Todo o estádio se levantou esperando o penálti (ou, no mínimo, o perigoso livre) e o respectivo cartão vermelho. Tal como sucederia poucos meses depois frente ao Barcelona, o Benfica provou também aqui um pouco daquilo que é uma indesmentível protecção da Uefa, e das suas arbitragens, aos nomes financeira e comercialmente mais fortes. O árbitro nada assinalou, e perdia-se assim uma excelente ocasião para dilatar a vantagem, e assegurar algum conforto para uma segunda parte que se antevia dramática.
Chegou-se ao intervalo com 2-1. Ninguém sabia, mas seria este o resultado final.
Devo dizer que, durante quase toda a partida, perante uma vantagem tão frágil – e o empate, recorde-se, não chegava -, contra tão forte adversário, nunca me convenci plenamente da possibilidade de êxito do Benfica. De certo que a qualquer momento Cristiano Ronaldo, Van Nistelrooy ou Rooney, num lance individual ou colectivo, numa falha ou por via de um qualquer golpe de genialidade, acabariam por repor a natural hierarquia do jogo. Era esse o meu espírito quando, nos corredores da Luz, discutia ao telefone com amigos as incidências da primeira parte.
O segundo período iniciou-se, e pouco depois Ronaldo atirou uma bola ao poste. O tempo ia passando, o Manchester pressionava, mas a torre de centrais que o Koeman colocava na sua área (Alcides, Luisão e Anderson) ia chegando para tudo. O relógio parecia andar para trás, mas a realidade é que o Benfica se aproximava de um feito notável. A meio da segunda parte comecei, enfim, a acreditar que o milagre seria possível.
A ponta final do jogo foi de um dramatismo indescritível. O estádio rebentava de um misto de euforia e ansiedade, que criava um clima onde mesmo um experiente adversário, como o Manchester United, tinha dificuldade em jogar. O Benfica dava mostras de uma união fortíssima entre os seus jogadores, e conseguia, a espaços, contra-ataques perigosos - recordo dois, concluídos por Geovanni e João Pereira (entretanto entrado) com remates ao lado. A equipa de Alex Ferguson começava a perder a cabeça, e insistia cada vez mais num chuveirinho para a área, que soava a música celestial para os centrais benfiquistas.
Quando o árbitro (se não estou em erro, o grego Vassaras) apitou para o final, tudo parecia tratar-se de um sonho. Muitos dos adeptos, ainda sintonizados com os tempos de glória europeia do clube, terão encarado a passagem com felicidade, mas com alguma naturalidade. Para mim - e para muitos outros - foi um feito extraordinário, e terei ficado tão feliz como quando, anos antes, por duas vezes, vi na Luz o Benfica apurar-se para a própria final da prova. Este era aliás, o momento do reencontro do Benfica com a sua história, e era, na verdade, algo que fazia a Europa abrir a boca de espanto.
A noite foi de festa, com passagem por várias das principais "capelinhas" de Lisboa. Das Docas ao Bairro Alto, terminando ao som da música do Lux, mesmo à beirinha do Tejo, sempre com muita cerveja e muita euforia. Prometi a mim próprio que só me iria deitar depois de ler “A Bola” do dia seguinte, e recordo perfeitamente de, já com o sol a nascer, comprar de enfiada, numa estação de serviço, todos os jornais desportivos do dia, e deleitar-me a folheá-los antes de adormecer sobre uma nuvem de felicidade.
O Benfica terá atingido, nessa noite, um dos pontos mais altos da sua história internacional nas últimas décadas. Seguiu-se a também inesquecível eliminatória com o Liverpool, e depois a infelicidade de apanhar, nos quartos-de-final, com a melhor equipa da competição - o Barcelona já de Messi, e ainda de Ronaldinho Gaúcho, Deco, Eto'o, Puyol e companhia, que seria o natural campeão europeu da temporada.

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