O OUTRO LADO DA BOLA
Longe dos holofotes do mediatismo, longe dos grandes palcos e das grandes multidões, longe do profissionalismo principescamente pago, existe um outro futebol, com menos qualidade técnica é certo, mas igualmente capaz de despertar as grandes emoções de um desporto que, também aí, é rei.
Em fim-de-semana de pausa no principal campeonato, VEDETA DA BOLA esteve na eliminatória da Taça de Portugal, designadamente em Évora, no confronto entre o Juventude local (III divisão) e o Pampilhosa (II B), e garante que não deu o seu tempo por mal empregue tal a intensidade dramática de uma fita que, mesmo com actores de segunda e terceira categoria, foi capaz de prender o olhar durante mais de 120 minutos, terminando com um verdadeiro “happy-end” para os de uma casa que não deixa de ser também do autor destas linhas, sócio do clube eborense há mais duas décadas.
A equipa juventudista – cuja unidade de maior nomeada é actualmente o ponta-de-lança Edinho, que jogou no V.Guimarães com Vítor Paneira, Capucho, Zahovic, Neno e José Carlos, passando também pela segunda divisão inglesa - ganhou após duas séries de desempate por grandes penalidades, depois de ter estado a perder durante quase todo o tempo regulamentar, chegar à igualdade a apenas seis minutos dos noventa na sequência de um penálti (convertido justamente pelo veterano avançado de que falei), ver-se novamente em desvantagem no prolongamento fruto de uma falha incrível do seu guarda-redes (minutos mais tarde tornado herói), e ter voltado a empatar no último lance do jogo quando os relógios já passavam dos 120 minutos. Na lotaria do desempate, vários falhanços para um e outro lado foram criando uma expectativa cada vez maior, até que ao oitavo penálti, o Juventude levou a melhor, lançando o delírio entre os cerca de 300 espectadores presentes.
Este magnífico espectáculo que numa linda tarde de Outono presenciei, faz-me reflectir sobre aquilo que é hoje o futebol das divisões secundárias.
Há trinta anos atrás, quando a televisão apenas nos oferecia as finais da Taça de Inglaterra e da Taça dos Campeões, e nem a maioria dos jogos da selecção nacional eram objecto de transmissão directa, a única forma que grande parte do país tinha de assistir a um jogo de futebol era deslocar-se nos domingos à tarde ao campo (na maioria das vezes de terra batida) da sua terra, e aí vibrar com os golos, as defesas, os penáltis (assinalados e por assinalar), com a curiosa vantagem de poder falar bem aos ouvidos do fiscal de linha, do treinador, e eventualmente até poder discutir com ele ou com os jogadores, no dia seguinte à mesa do café, as incidências da partida.
Este era um conceito de futebol assente nas rivalidades regionais, cuja concretização passava muitas vezes pelo prazer da prática desportiva, pela carolice de uns quantos dirigentes - o meu pai foi um deles, lembrando-me ainda vagamente de na minha mais remota infância andar com ele de terra em terra, Alentejo fora, pelos bancos de suplentes de campos pelados e a servir de mascote a jogadores para quem os honorários se cingiam a um lanche ajantarado na sede do clube aos domingos após os jogos -, mas que aglutinava o público, e o fazia inclusivamente deslocar quando as equipas jogavam fora de casa.
Desde há uns anos para cá, com a exagerada profusão de jogos nos canais da televisão por cabo (ontem à hora do jantar eram três as transmissões em simultâneo), com a qualidade dos protagonistas de ligas como a inglesa, a espanhola ou a italiana, o público português virou as costas ao futebol amador ou semi-profissional. Aliás, virou as costas a todos os estádios, pois mesmo na Liga principal as assistências são escandalosamente fracas, sobretudo tendo em conta os investimentos que os clubes são obrigados a fazer para manter a sua face de profissionalismo, que mascara o mar de equívocos económico-financeiros em que navegam. Em Portugal o futebol saiu dos estádios e passou definitivamente a ser um mero programa televisivo.
Julgo haver motivos para temer que este novo paradigma acabe por matar o jogo no seu carácter mais universal, pois o mediatismo crescente (limitado aos clubes grandes e à selecção, diga-se), não encontra paralelismo na criação de receitas compatíveis com os custos que os clubes mantêm, sobretudo aqueles que nas divisões secundárias se vêm afastados dos generosos proventos proporcionados pelas transmissões do pequeno ecrã.
Há que fazer algo, e esse algo poderá muito bem ser a redução do profissionalismo a um número restrito de clubes (talvez apenas dez), incrementando por outro lado as receitas nas divisões secundárias, o que passa pelo aumento do número de jogos, pela segmentação regional dos campeonatos e pela harmonização de horários.
Neste sentido julgo que o quadro competitivo ideal seria uma Liga Principal com dez equipas a quatro voltas, com cinco jogos semanais todos televisionados e todos dentro do fim-de-semana e em horários regulares (sábados às 17.00, 19.00 e 21.00, e domingos às 19.00 e 21.00, por exemplo), uma segunda divisão com quatro zonas de 22 clubes cada uma, e uma terceira divisão com seis zonas também de 22 clubes, com os jogos todos ao domingo às 16.00, e equipas de carácter amador ou semi-profissional. Penso que seria também de restringir e ordenar a verdadeira hemorragia de transmissões directas com que SportTv nos brinda quase diariamente, das quais cerca de metade que certamente ninguém sentiria a falta – que tal apenas o mais importante jogo de cada liga europeia semanalmente ?
É certo que este modelo originaria bastante contestação de jogadores e técnicos, pois muitos deles ficariam a prazo sem lugar no escalão principal. Mas entre este lado do problema, e o definhar de clubes, os salários em atraso que são regra fora do âmbito dos cinco ou seis principais emblemas, a quebra de assistências e de receitas, e a falta de competitividade e espectacularidade dos principais jogos, que se reflecte também no rendimento internacional, há que tomar decisões racionais e que apontem para o longo prazo.
Não se pode banalizar o futebol, nem destruir as suas raízes de base, que sociologicamente se encontram nos despiques entre bairros ou entre localidades vizinhas.
Fica a reflexão.
E já agora que saia um Juventude de Évora-Benfica na próxima eliminatória, onde já entram os principais clubes. Seria seguramente o jogo da minha vida !
FOTO: www.juventudesportclube.blogspot.com
5 comentários:
LF
Foi um bom jogo sem duvida
Eu também queria de ver um Juventude-Benfica, mas havia um pequeno probléma, por qual deles torcer, um da minha terra, outro do meu coração
Mesmo assim iria torcer pelo Benfica, pois podia ganhar esta prova, e o Juventude, mais tarde ou mais cedo iria perder e para perder que seja contra o Benfica
O MAIOR CLUBE DO MUNDO
Já pensei nisso.
O ideal era o Benfica ganhar nos penáltis.
Era uma forma de os dois cumprirem o seu dever, e sairem a bem da eliminatória.
Para o Benfica, ser eliminado pelo Juventude, seria uma humilhação que eu de modo algum desejo.
Obrigar o Benfica a penáltis seria uma enorme vitória para a equipa eborense.
Bom post.
Gosto muito de ver um bom jogo das distritais, em que sempre aparece aquele central com um rico e farfalhudo bigodaço para quem a a canela vai até ao pescoço...
"Este era um conceito de futebol assente nas rivalidades regionais, cuja concretização passava muitas vezes pelo prazer da prática desportiva, pela carolice de uns quantos dirigentes - o meu pai foi um deles, lembrando-me ainda vagamente de na minha mais remota infância andar com ele de terra em terra, Alentejo fora, pelos bancos de suplentes de campos pelados e a servir de mascote a jogadores para quem os honorários se cingiam a um lanche ajantarado na sede do clube aos domingos após os jogos"
Este futebol ainda existe e é aqui descrito na perfeição.
De facto esse futebol ainda existe, e todas as semanas se disputa por esse país fora.
A questão é que o público virou-lhe as costas, fruto, em meu entender, sobretudo, da excessiva quantidade de jogos na televisão.
Recordo na minha infância de ver duas ou três mil pessoas em jogos da segunda divisão, já não falando das 120 mil que enchiam o estádio da Luz várias vezes por ano. O futebol era um desporto de multidões (como ainda o será em Espanha, Inglaterra por exemplo)
Hoje em dia em Portugal, as pessoas desabituaram-se de ir aos estádios, fazendo do futebol um programa televisivo.
O principais penalizados com isso foram os clubes das divisões secundárias, sem outras fontes de receita que não a quotização e a bilheteira, e presos a modelos competitivos desajustados à sua própria sobrevivência.
Foi este o sentido do post, estimulado por um jogo que, certamente como muitos outros por todo o país, proporcionou um excelente espectáculo, merecendo aquelas equipas e aqueles jogaadores que mais gente os acompanhasse semana a semana.
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