JOGOS PARA A ETERNIDADE (3) - F.C.Porto-Benfica / 1991
Por várias vezes os campeonatos nacionais ficaram marcados ou decididos por apenas um jogo, como se de uma final se tratasse. Foi assim nos célebres 6-3 em Alvalade, assim foi também aquando do famoso golo de Luisão na Luz, só para falar dos últimos anos. Poucas foram porém as ocasiões em que esse decisivo momento assumiu proporções tão quentes, dentro e fora do campo, como no F.C.Porto-Benfica de 1990-91.
Esse campeonato começou com um Sporting extremamente afirmativo, alcançando onze vitórias consecutivas e deixando para trás Benfica e F.C.Porto, que com um empate entre ambos na Luz, e mais alguns pontos perdidos, se foram atrasando. Por volta do Natal, como era frequente na altura, o Sporting quebrou, perdendo jogos e pontos em série – entre os quais derrota caseira com o rival Benfica – deixando águias e dragões sozinhos na luta pela liderança. Deu-se então uma impressionante sequência de vitórias destas duas equipas, o que fez com que se encontrassem a quatro jornadas do fim da prova, uma semana depois da vitória portista em Alvalade, precisamente com os mesmos pontos (apenas uma derrota e quatro empates) - a prova terminaria com uma das mais altas pontuações de sempre dos dois primeiros classificados.
O jogo das Antas era assim uma verdadeira final. Mas mais do que um simples campeonato era a própria hegemonia do futebol nacional que, na altura, estava em causa. Se há jogos de vida ou de morte, pois este foi seguramente um deles, e quem tem memória da ocasião sabe bem do que estou a falar.
Nos oito anos anteriores Benfica e F.C.Porto tinham dividido irmãmente entre si os títulos nacionais (quatro para cada), e no mesmo período o Benfica tinha estado presente em três finais europeias (era à data vice-campeão europeu) e o F.C.Porto em duas, conseguindo a vitória na Taça dos Campeões Europeus de 1987. Depois de décadas de declarada superioridade benfiquista, os anos oitenta haviam confirmado o F.C.Porto como potência nacional e internacional, que, antes de cimentar o seu domínio- o que sucederia na década seguinte – passou por esta fase transitória durante a qual, ano a ano, discutia os títulos com o Benfica. Estava-se por isso numa época em que a luta pelo poder transbordava em muito aquilo que se passava nos relvados, e a guerra de bastidores era cada vez mais uma realidade a que nos teríamos que habituar. Este jogo foi emblemático a esse respeito, até porque dois anos antes estes clubes haviam cortado relações, na sequência das transferências de Ademir para a Luz e Rui Águas para as Antas.
De tudo se passou nesse dia, desde agressões em pleno túnel - inclusivamente ao presidente benfiquista João Santos e ao árbitro Carlos Valente - ameaças de morte, apedrejamento do autocarro encarnado, até ao estranho caso do cheiro tóxico no balneário do Benfica, que obrigou os jogadores a equiparem-se no corredor. O relvado foi encharcado nas faixas laterais para complicar o estilo de jogo dos encarnados, muito assente na exploração das alas. Eram os tempos em que, nas Antas, se viam com frequência armas de fogo junto aos balneários dos adversários e dos árbitros. Emergiu nesta altura como figura nacional o famigerado Guarda Abel, um agente da polícia que, além de fazer a guarda pessoal aos dirigentes do F.C.Porto, era o responsável pela “segurança” do estádio. Dizia-se que era ele operacionalizar todo aquele clima de terror que visava amedrontar quem lá se deslocava. Não era fácil a qualquer equipa suportar ambiente tão hostil, mas o Benfica de Eriksson era uma equipa de grande personalidade, e seria capaz de resistir a tudo.
A equipa lisboeta partia para este duelo com vantagem no goal-average, o que significava que, tendo empatado a dois na Luz, lhe bastaria novo empate para manter a liderança.
De forma surpreendente, o técnico sueco do Benfica apostou numa alteração táctica com a entrada de Paulo Madeira para falso lateral direito, deslocando-se para central quando a equipa perdesse a bola, de forma a criar superioridade numérica perante a dupla de ataque portista, constituída por Domingos e Kostadinov. Saia da equipa o ofensivo lateral José Carlos, ficando Vítor Paneira com responsabilidades acrescidas no flanco direito, à semelhança do que viria a suceder na campanha europeia do ano seguinte (por exemplo, no célebre jogo frente ao Arsenal em Londres).
Nesta decisiva e dramática partida das Antas, jogada numa tarde de céu carregado, Eriksson fez assim alinhar o seguinte onze: Neno, Paulo Madeira, Ricardo Gomes, William, Veloso, Jonas Thern, Paulo Sousa, Vítor Paneira, Valdo, Pacheco e Rui Águas (regressado à Luz depois de duas épocas de azul e branco). Uma equipa de luxo, sem dúvida.
Pelo F.C.Porto, orientado por Artur Jorge, jogavam: Vítor Baía, João Pinto, Fernando Couto, Aloísio, Paulo Pereira André, Semedo, Jorge Couto, Vlk, Domingos e Kostadinov.
Os portistas, a jogar em casa e a necessitar da vitória, entraram mais fortes, empurrando o Benfica para a linha defensiva, e construindo alguns lances de grande perigo junto da baliza de Neno. O Benfica, por seu turno, tentava em contra-ataque um golo que lhe desse maior tranquilidade na partida. O intervalo chegou com 0-0.
Na segunda parte a tónica do jogo alterou-se ligeiramente, passando o Benfica a controlar mais a partida, embora sem causar grandes problemas ao então muito jovem Vítor Baía. Até que chegámos aos últimos dez minutos.
Num assomo de grande coragem, Eriksson, mesmo bastando-lhe o empate, colocou em campo o avançado César Brito no lugar de Pacheco. Mal sabia o jogador serrano que lhe estava reservada a tarde de maior glória de toda a sua carreira.
A nove minutos do fim do jogo Vítor Paneira consegue esquivar-se, e ganha a linha para cruzar. A bola encontra a cabeça de César Brito que, ao primeiro poste, supera nos ares Fernando Couto e bate Baía fazendo o 0-1. Foi o delírio entre os benfiquistas pelo país fora. Era o título ali mesmo ao pé.
Cinco minutos depois, Valdo é lançado na esquerda por Veloso, com um pequeno toque isola o mesmo César Brito que, à saída de Vítor Baía, lhe faz um bonito chapéu para a baliza fixando o resultado em 0-2.
Estava consumada a vitória, e poucas semanas depois seria festejado o anunciado título.
Depois do jogo a polémica continuou, com os portistas inconformados com uma derrota que não estava nos seus planos, num jogo que prepararam cuidadosamente dentro e fora do relvado. Viraram-se então para o árbitro Carlos Valente, o melhor juiz português da altura, contestação que durou ainda vários anos - apesar de nesse jogo ter deixado passar em claro uma grande penalidade a favor do Benfica. O setubalense foi inclusivamente acusado de ter viajado com o Benfica, o que não passou de uma calúnia de modo a aquecer o ambiente, e a colocar-lhe ainda maior pressão.
Tratou-se de uma vitória heróica, catorze anos depois do anterior triunfo nas Antas, coisa que apenas se repetiria, ironias do destino, catorze anos depois, desta feita com Nuno Gomes como protagonista. Só então, em 2005-06, o Benfica voltou a triunfar no reduto do seu principal adversário, agora já não no velho Estádio das Antas, mas sim no novo Dragão. Mas aquela, a de 1991, foi, porventura, a mais saborosa vitória de sempre do Benfica sobre o F.C.Porto.
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