GOLPE DE ESTÁDIO (1)

Há 30 anos...
O Verão estava insuportável. O calor sufocava, e o futebol preparava-se para iniciar mais
uma época. Os jogadores, regressados de férias, vinham com pouca vontade de trabalhar. Os
dirigentes, esses, estavam mais atarefados do que nunca. Eram as contratações, o estudo
das novas directrizes e a organização dos respectivos departamentos o que mais os
preocupava. Mas as atenções estavam viradas para o maior clube da cidade(Porto).
Anunciavam-se grandes transformações para um novo mandato de Américo de Sá, um
dirigente de corpo inteiro cuja figura e postura se assemelhava á de um aristocrata. Educado,
afável, mas um tanto pretensioso, seguia uma linha directiva com mais de trinta anos. Nos
últimos tempos, as vitórias começavam a sorrir e até veio um título já esperado há muitos
anos. O clube estava a ganhar uma nova estrutura organizativa, fruto da revolução política
que anos antes tinha acontecido e o aproveitamento correcto das linhas de acção traçadas
pelos partidos apontavam para a regionalização e a descentralização do poder.
Alguns homens do Norte tinham ganho força nos mecanismos estatais e tentavam
implantar na sua região uma retaguarda de pressão para combater a tendência de esquerda
que vinha da região sul. O momento foi soberbamente aproveitado em toda a sua extensão e
teve como principal mentor José Maria Pedroto, o técnico mais conceituado do futebol
português.
O homem já tinha revelado, mesmo como jogador, uma inteligência invulgar e, logo que
tomou conta do clube do seu coração, procurou colocar um plano que noutros tempos se
tinha mostrado de difícil execução.
Para o acompanhar, escolheu elementos que já antes se tinham feito notar pela sua forte
dinâmica. O seu mais directo colaborador era Pinto da Costa, o homem que chefiava o
departamento e comparticipava em toda a estratégia por ele montada. Pinto da Costa movia-se
habilmente pelos corredores do poder, possuía uma memória invulgar, e escrúpulos era
coisa que se não lhe conhecia. Hábil na utilização do discurso, atacava as suas vítimas com
uma certa ironia, mas não tinha contemplações para quem se lhe atravessasse no caminho.
Esta dupla era imbatível, mas perigosa. Ambos já tinham mostrado a sua intuição e
poder de manobra quando conseguiram ludibriar o poder que outrora vinha da capital e dos
clubes que normalmente dividiam entre si os prazeres da vitória. O certo é que do Norte
surgia um intruso a querer também saborear esses incomensuráveis prazeres da conquista.
Aquele título, ganho depois de tantos anos de luta contra as mais miseráveis injustiças, era
uma lança cravada em terras de Mouros. Um verdadeiro desafio àqueles que usavam e
abusavam do poder que possuíam. Mais do que tudo, tinha sido uma vitória do Norte. Os
populares rejubilavam com o feito, mesmo a gostarem de outras cores clubísticas. Pedroto
surgiu como um herói e passou a ser a bandeira dos humilhados e oprimidos. Lenine não
faria melhor.
Mas tanto Pedroto como Pinto da Costa sabiam o perigo que isso representava e
prepararam-se para enfrentar novos ataques. Era necessário ser duro na acção e lutar sem
contemplações contra o inimigo, mas o presidente do clube e os seus pares não possuíam a
estaleca necessária para os acompanhar nesta corrida louca contra a hegemonia da capital.
Américo de Sá mais parecia um aristocrata e no futebol os punhos de renda estavam a passar
de moda.
- Com o Sá, não vamos a lado nenhum!- choramingou PC.
- Ir, vamos. Mas quando atravessamos a Ponte da Arrábida já estamos a perder!- atirou
Pedroto, sempre mais pragmático e mostrando mais uma vez que era um homem que anda
sempre um passo ou dois á frente dos restantes.
Pinto da Costa, com a sua cara de bebé chorão e os óculos descaídos sobre o nariz,
sorriu e tentou imaginar a melhor forma de dar a volta ao problema. Havia que contar com
duas situações, antes do mais.
Pedroto era agressivo, competente e justo. Lutava como ninguém e por aquilo em que
acreditava e não se deixava "comer por lorpa", mas preservava os seus amigos e era incapaz
de trair quem se envolvesse com ele na acção.
Tinha de se arranjar uma solução ajustada ao prestígio de Américo de Sá.
Todas as noites, Pedroto gostava de um joguinho e cartas, e o seu jogo predilecto era a
"ricardina". O local de encontro e de jogo era a tasca do Ilídio Pinto, também proprietário da
mercearia Petúlia. Nas catacumbas, uma nova fé clubística crescia, mas esta estava pronta
para soltar os leões sobre o dono do Circo...
Depois de uns copos e de uma conversa animada sobre futebol, a noite acabava sempre
na cave da mercearia com o tal jogo da "ricardina". Ilídio Pinto sofria como ninguém os
problemas do clube. O seu maior sonho era ser um dia director do departamento de futebol,
mas havia muitos mais candidatos para o lugar, e ninguém o levava a sério. E, que se
soubesse, o cargo não era prémio que saísse como brinde do bolo-rei. Mas a inteligência era
um dote que não contemplava o Ilídio. Lá que era um homem astuto, era. E lá que estava
cheio de dinheiro, disso também ninguém duvidava. E como estava sempre de bolsa aberta
para ir em socorro dos problemas do clube, havia que deixá-lo pensar que o sonho um dia se
iria realizar. A sua riqueza tinha como base muita poupança e o segredo roubado ao seu
antigo patrão da receita da broa de Avintes. Em poucos anos, apesar de ter a sua mercearia
noutra zona, transformou-se no "Rei da Broa de Avintes" e as vendas foram de vento em
popa. Os negócios estavam maus, a economia fraca, o País vivia tempos difíceis, e a broa de
Avintes sempre era barata e enchia os foles do estômago dos menos favorecidos. E a bolsa
do Ilídio.
A noite estava quente, e o ambiente alegre, mas PC chegou de semblante carregado e
fez um sinal de cumplicidade a Pedroto: - Porque é que está com um ar tão «saturno»?
Pedroto quase se desfazia numa gargalhada, mas Pinto da Costa, já habituado ás bacoradas
do Ilídio, respondeu com a ironia que lhe era habitual:
- É do tempo, e os astros não ajudam. Depois de ter dado uma palmada nas costas do
Ilídio, adivinhando-lhe as intenções, foi-lhe dizendo: - Vamos a uma partidinha!
O Ilídio não deixou de mostrar um sorriso rasgado de orelha a orelha. Era daquilo que
ele mais gostava. Não se importava de perder todas as noites. A broa de Avintes dava para
tudo. O importante era estar com os heróis que fizeram do seu clube campeão. Mandou
fechar a loja, meteu o apuro do dia no bolso e foi de imediato buscar as cartas. PC
aproveitou a ausência e contou a sua estratégia a Pedroto.
- A melhor forma de conseguirmos levar em frente o nosso plano, é convencermos o
Américo de Sá de que o futebol no clube tem de ser totalmente autónomo. Ou seja ele gere o
clube e nós tomamos conta do futebol.
- Por acaso não lhe fica nada mal o papel de corta-fitas. Como é que vamos fazer isso? -
perguntou PC largando um sorriso cúmplice.
- Ele é capaz de não aceitar essa situação com tanta facilidade. Entretanto , o Ilídio
chegou com o baralho de cartas, e ouvindo as últimas frases, perguntou com um ar de quem
não está a entender nada.
- O Américo Tomás vai voltar? Pedroto piscou o olho a Pinto da Costa e mudou o tema á
conversa.
- PC, é desta que vais jogar a «ricardina»?
- Bem sabes que jogo de cartas não é comigo. Os meus jogos são outros.
Chegaram outros convidados para uma partidinha e começou o saque ao Ilídio. Irritado
com tanta falta de sorte, o dono da mercearia só via na sua frente o desfiar dos naipes que
lhe tinham tocado. Pinto da Costa assistia impávido e sereno ao baralhar das cartas e á forma
como eram distribuídas. E pensou: «Um dia serei eu a distribuir o jogo». Algo aborrecido,
levantou-se e aproveitando o entusiasmo do Ilídio, subiu á mercearia e começou a retirar
alguns chocolates das prateleiras. Voltou a descer e, com o à-vontade que lhe era peculiar,
distribuiu algumas tabletes pelos jogadores. O Ilídio também se serviu, sem dar conta que as
mesmas lhe foram roubadas, tal o seu entusiasmo pelo jogo.
Pedroto riu-se, e os presentes também não se contiveram. O Ilídio parece ter acordado e,
dando uma dentada no chocolate, pensou em voz alta:
- Vocês estão a rir-se muito, devem ter bom jogo. Mas não faz mal, a minha sorte também
há-de chegar. A sorte só lhe chegou no dia seguinte com a venda de mais broa de Avintes.
No final do joguinho de cartas, Pedroto convidou PC para uns fadinhos. Sempre era um sítio
recatado para uma conversa a dois. Já só faltava um dia para que a equipa de futebol se
apresentasse e nada estava definido em relação à chefia do departamento de futebol.
- O Américo de Sá já me convidou para continuar, mas temos de ter mais poder para fazer
frente aos mouros.
Pedroto era um homem de soluções rápidas e não esteve com meias medidas, lançando a
sua proposta a PC.
- Amanhã vais falar com o homem e dizes-lhe que aceitas continuar no cargo, mas com
algumas condições, e aproveitas para expor o teu plano. Não tenhas problemas, porque o
título ganho deu-nos uma tal força, que é difícil haver gente com coragem para nos derrubar.
Confiante nas palavras do "mestre", PC marcou encontro com Américo de Sá e colocou-o
ao corrente do seu plano. Américo de Sá mostrou-se desconfiado e delicadamente disse
"talvez sim", o que bem podia ser traduzido por "certamente que não". E para que Pinto da
Costa não ficasse com dúvidas, o presidente fez mesmo questão de precisar:
- Mas, para já, se quer ficar com o departamento de futebol, fica, embora nas condições
anteriores.
PC não estava a contar com aquela resposta e ficou lívido de raiva. Bateu com a porta e
saiu, pensando na velha máxima de Júlio César que era para si o referencial da vida: "Antes
ser o primeiro numa aldeia que ser o segundo em Roma".
Pinto da Costa telefonou de imediato a Pedroto e colocou-o ao corrente da situação.
- Temos que nos encontrar com urgência para sabermos o que vamos fazer amanhã.
Pedroto tentou colocar alguma água na fervura e tranquilizou PC.
- Vem já a minha casa, para elaborarmos a estratégia para amanhã.
em pouco tempo tudo ficou gizado. Os tempos do PREC ainda estavam bem vivos, e se o
Américo de Sá se julgava importante, iria ter de se vergar ao poder popular.
Dizia PC:
Tem calma. Essas coisas não se tratam dessa forma. Em primeiro lugar vamos fazer um
comunicado e amanhã revolucionamos isto tudo.
Nessa noite voltaram a encontrar-se na Petúlia para afinarem a estratégia. Mas como não
se sabia muito bem no que é que aquilo tudo ia resultar, era melhor colocarem Ilídio Pinto no
plano, estabeleceu PC. Pedroto reagiu pela negativa.
- Deixa o Ilídio em paz, porque ele ainda é capaz de nos estragar a estratégia.
- Estás doido. Vamos só dar-lhe um cheirinho. Nunca se sabe se vamos necessitar de
dinheiro, e se for caso disso, onde é que o vamos buscar?
Pedroto hesitou, mas acabou por concordar. Convidaram o Ilídio para a reunião e
contaram-lhe apenas algumas peripécias do plano. O Ilídio revelou-se eufórico, como quando
lhe saía bom jogo. Era mesmo aquilo que ele queria. O Américo de Sá não ia aguentar este
ataque e abandonava o clube. O Pinto da Costa passava a presidente, e ele realizava o seu
velho sonho: tomar conta do departamento de futebol.
O Ilídio até foi mais cedo para a cama, depois de ter dito ao Pedroto e ao PC que podiam
contar com tudo o que necessitassem. Mesmo dinheiro, a quantia que fosse necessária. Logo
que chegou a casa, não resistiu. Tirou a bata de trabalho e foi ao roupeiro escolher o seu
melhor fato. Vestiu-o, colocou uma gravata, foi a uma pequena gaveta da cómoda e retirou
uma braçadeira com uma inscrição bordada a branco: «delegado ao jogo». Passeou-se um
pouco no quarto de cabeça erguida e começou a gritar para a mulher, que já estava a
dormir:
- Levanta-te que isso não é nada. Vai à esquerda. Vai lá, corre. Corta, passa, chuta que é
golo! A mulher acordou estremunhada e, vendo o Ilídio naqueles propósitos, logo pensou:
«Ai que o meu Ilídio ficou maluquinho!»
- Mulher, estás a ver um futuro delegado ao jogo! Amanhã vai haver um golpe de estádio
e ninguém mais nos vai poder parar.
A Dona Virgínia, sem perceber o que se estava a passar, pensou: «E mais uma das
maluquices do meu marido». E virou-se para o outro lado, voltando a adormecer, pois, de
manhã, bem cedinho, tinha que estar no seu posto a fabricar a broinha.
Pedroto foi o primeiro a entrar no estádio e logo que os jogadores chegaram fez uma
reunião e contou-lhes o que se estava a passar.
- Rapazes, se queremos continuar a ganhar, a conquistar títulos e a criar fama, temos de
manter o grupo unido. Fomos nós que conseguimos realizar o sonho de conquista do título e
não queremos ficar por aqui. Tenho a informar-vos que o nosso presidente, Américo de Sá,
excluiu o Pinto da Costa do departamento de futebol e, sendo assim, não trabalho com mais
ninguém. Fora a ditadura e os incompetentes. Unidos ninguém nos vence.
Um dos jogadores, atento e entusiasmado com o discurso, ainda esboçou a palavra de
ordem:
- Os jogadores unidos jamais serão...
Atento, Pedroto travou o entusiasmo do jogador.
- Alto aí! Por esse caminho não, porque às tantas ainda dizem que somos comunistas, e
isto não é um golpe de Estado. Isto é apenas um golpe de estádio.
O Ilídio não perdeu pitada do que estava a acontecer. Entusiasmado com a possibilidade
de poder realizar o seu velho sonho de chefiar o departamento de futebol, subiu a um banco
e apoiou Pedroto:
- É isso mesmo. Isto não é um golpe de Estado, é um golpe de estádio.
Pedroto retirou o chapéu que lhe encobria o «capachinho», fez deslizar os dedos pelos
poucos cabelos de que ainda era proprietário, enquanto pensava na melhor forma de fazer
sair o Ilídio, para que a bronca não fosse ainda mais longe. Pediu então a todos os presentes:
- Gostava de ficar agora sozinho com os jogadores e a equipa técnica. Ó António, pede
aos restantes que saiam!
Novamente na posse do comando da situação, Pedroto explanou as linhas mestras do seu
plano, como se estivesse apenas a dar a táctica para o próximo jogo:
- O Américo de Sá não tem o direito de travar a caminhada gloriosa do nosso clube. Nós
assumimos uma grande responsabilidade para com os nossos associados e não podemos
desiludi-los. Neste momento, não há outra alternativa. Ou ele ou nós e nós somos a
verdadeira glória do clube. Somos os únicos capazes de lutar contra os mouros, de os
derrotar novamente, como fez D. Afonso Henriques.
O ambiente voltou a aquecer, e o entusiasmo da maior parte dos jogadores tomou conta
da situação. Discutiu-se a melhor forma de enfrentar o problema e ficou acordado escreverse
um comunicado para entregar á Imprensa, dando-lhes conta da situação. Um dos
jogadores ainda disse:
- Quem vai buscar uma folha de papel?
Mas Pedroto apressou-se a acrescentar:
- Não vale e pena. Dormi toda a noite sobre o assunto e por acaso até já trago aqui o
comunicado feito. Alguns jogadores ficaram desconfiados. Aquilo mais parecia um golpe de
uma organização comunista. Trabalhadores a quererem tomar conta das empresas tem dado
mau resultado. Resolveram logo pôr em causa aquela acção. Houve alguma discussão no
balneário e, como a maioria estava de acordo, resolveram encostar a direcção á parede. Ou
aceitavam as condições de Pinto da Costa, ou vamos todos embora. Mas o tiro saiu-lhes pela
culatra. Américo de Sá não se deixou abater pela intimidação e não aceitou as exigências. O
escândalo rebentou.
Só quatro jogadores ficaram de fora da situação e alinharam com Américo de Sá, os outros
foram para a mercearia do Ilídio Pinto.
Os grupos de pessoas com influência no clube dividiu-se. Se era verdade que tanto
Pedroto como Pinto da Costa tinham feito uma autêntica revolução no futebol quando
ganharam o título, também não era menos verdade que não estava certo que se
aproveitassem da situação para assaltar o poder.
Moviam-se nos bastidores os mais variados tipos de influências, porque acima de tudo
estavam os mais elementares interesses do clube. Os prejuízos podiam ser desastrosos,
estavam a perder-se dias de preparação, o campeonato estava á porta e a equipa iria
ressentir-se disso se o braço de ferro não terminasse. Sob o comando de um preparador
físico, os jogadores treinavam-se nas ruas da cidade e no final cada um ia tomar banho a sua
casa. Era o descalabro. Nunca antes se tinha assistido a coisa igual.
Estava na hora de o Ilídio entrar em cena. Reuniu-se com Pedroto e PC e perguntou-lhe o
que é que podia fazer para ajudar. Sentiu-se de imediato um brilho nos olhos de PC. Estava
ali a resolução para parte do problema.
- Precisamos de dinheiro para pagar o estágio aos jogadores. Vamos mandá-los para
onde ninguém os encontre. Assim, eles podem trabalhar em paz, até que tudo isto se
resolva. Temos também de lhes garantir os vencimentos no final do mês. Ilídio, você arranja
dinheiro para fazer face a estas despesas?
O Ilídio gostava de se sentir útil. Era ele que ia resolver o problema. A carteira era a sua
divisa e colocou-a ao dispor da situação. Aquele estava a ser um dia bom, pois já vendera
500 broas.
Os jogadores hospedaram-se numa estalagem junto ao pinhal e tudo se complicou ainda
mais. Toda a gente queria saber onde estavam os craques. A imprensa procurava e não
encontrava. Criaram-se grupos de espiões de parte a parte. A pressão aumentava, e o Ilídio
tinha de retirar os seus dividendos. A sua oportunidade não tardava, mas toda a gente tinha
de ficar a saber que era ele que estava a financiar a situação. Mandou chamar um jornalista
amigo e confessou-lhe:
- Fui eu que dei o dinheiro para o estágio . Eles estão.. bzzzzzzzzzzz
No outro dia, os jogadores voltaram a ser «assaltados pela malta dos jornais. Novo
escândalo. Américo de Sá não dava sinais de fraqueza. Resistiu a todos os tipos de pressão.
Foram reuniões, mais reuniões e assembleias gerais. Mas o presidente e os seus homens não
recuaram um milímetro que fosse.
Vencidos pelo tempo e pela persistência, todos os jogadores recuaram. Todos...menos
um: António Oliveira. Pedroto e Pinto da Costa ficaram sozinhos. Américo de Sá tinha
vencido. Contratou um novo treinador e ofereceu a chefia do departamento de futebol a um
homem da sua confiança.
O Ilídio é que não perdeu tempo. Quando viu as coisas mal paradas, resolveu virar-se
para o outro lado. Telefonou ao Américo de Sá e defendeu-se:
- Olhe que aquilo do dinheiro do estágio não fui eu que dei. É tudo mentira. O presidente
já sabe que pode contar comigo. Se for necessário contratar jogadores e um novo treinador,
já sabe que não há problema nenhum!
Ninguém tinha dúvidas de que iria ser necessário muito dinheiro, e no clube não
abundavam os mecenas. Numa situação destas, o Ilídio podia vir a ser muito útil.
Pinto da Costa, Pedroto e o «capitão» de equipa, António Oliveira, mantiveram as duas
posições. Tinham sido derrotados, mas não havia nada a uni-los. Cada um que se safasse da
forma que lhe desse mais jeito. Pedroto, sem abandonar a mania da conquista da capital aos
Mouros, instalou-se na terra de D. Afonso Henriques.
- A luta continua. Vai ser aqui que me vou inspirar para voltar a conquistar o poder.
Levou com ele o António, seu adjunto. O preparador físico também tinha desertado e
procurado encosto no grupo de Américo de Sá. Só mesmo António Oliveira resistiu,
preferindo o desemprego á humilhação de voltar atrás. Tinha assumido uma posição e
mantinha-a, mesmo que agora pensasse que tudo estava errado.
- Vamos com calma. Roma e Penafiel não se fizeram num dia.
Dito isto, virou á esquerda, travou a fundo e abriu a porta a uma miúda que por ali estava
encostada a um candeeiro.
Pinto da Costa assumiu a derrota, mas não a digeriu. Parecia perdido para o futebol. A sua
atitude revolucionária tinha deixado marcas bastante profundas. O seu futuro como dirigente
estava severamente comprometido, mas Pinto da Costa sempre acreditou que no futebol é o
golo que comanda as atitudes e as situações e que provoca a queda dos dirigentes e
treinadores. Por isso, PC não se deixava abater com tanta facilidade. A sua resistência não
tinha limites e afinal só tinha perdido uma batalha. O importante, agora, era fazer com que o
seu clube tivesse alguns desaires. Tinha, por isso, de montar a sua estratégia, mesmo sem os
seus anteriores aliados.
Os seus companheiros, os da tentativa de revolução, colocaram-se á margem para se
aliarem a quem ficou com o poder, e os profissionais seguiriam o seu rumo, a sua vida era
aquela; e, mais tarde ou mais cedo, acabariam por surgir novos empregos. Eram artistas do
futebol, tinham mérito e qualidade. O seu caso era mais difícil. Era um dirigente com algum
carisma ganho á custa do prestígio de Pedroto. A sua personalidade e capacidade ainda não
tinham sido verdadeiramente testadas. Faltava-lhe prestígio para fazer frente a Américo de
Sá. E não podia continuar a vender fogões toda a vida...
Sem abandonar os bastidores do futebol, foi minando a gerência de Américo de Sá. Não
era homem para ser derrotado com tanta facilidade, mas em alguns momentos chegou
mesmo a sentir o desespero de uma causa que parecia perdida. Mestre a colocar o boato a
circular, fez constar que um clube da capital lhe tinha dirigido o convite para assumir o
comando do departamento de futebol. O objectivo era deixar passar a mensagem de que o
inimigo tinha visto nele superiores qualidades e, perante tal facto, esperar que algumas vozes
se levantassem, reconhecendo o erro que tinham cometido. Mas acabou por acontecer o
contrário. A credibilidade de Pinto da Costa em relação ás posições que tomou em defesa do
Norte foi afectada.
Apercebendo-se de que a sua estratégia não resultara, logo se apressou a desmentir o
boato posto por ele a circular. As eleições estavam próximas e era necessário estabelecer um
plano mais sólido para derrotar Américo de Sá. Não era homem para viver sob o domínio da
derrota ou mudar de atitude procurando novamente as boas graças do presidente. Na sua
personalidade e forma de estar não encaixava a imagem de um falhado.
Pinto da Costa passou a sua idade escolar num colégio onde imperava uma grande
influência da religião católica e quando atingiu o liceu foi internado num colégio de padres.
Dos mais prestigiados do Norte do País. Ali fabricavam-se verdadeiros homens. Eram testados
como cobaias para poderem enfrentar no futuro as mais adversas contrariedades da vida.
Uma das disciplinas era constituída pela defesa individual de cada aluno perante toda a
turma e, já nessa altura Pinto da Costa era tido como o mais desenvolto no uso do discurso,
na sua capacidade de raciocínio rápido e retenção na memória de dados essenciais.
Inteligente e astuto como um verdadeiro jesuíta, bem cedo começou a demonstrar um
grande sentido de chefia. Sabia como dividir para reinar, utilizando um ar cândido e
descomprometido quando algumas atitudes de má-fé lhe eram dirigidas. Atirava a pedra e
sabia como esconder a mão. Mas a sua verdadeira arma era a grande capacidade de trabalho
e a completa dedicação a tudo o que fazia. Chegou a pensar ordenar-se padre, e o director
do colégio apostava que, se ele seguisse essa carreira, iríamos ter o segundo papa
português. A sua postura, a sua forma de falar e de estar deram-lhe sempre um toque
clerical. A mesma mão que abençoava os amigos, empunhava a cruz onde ele havia de
crucificá-los. Cativava, fazia amizades com facilidade e sabia como as utilizar e destruir como
se nunca tivesse culpa de nada.
Nunca foi grande atleta, mas a sua paixão pelo desporto atirou-o para o dirigismo.
Começou por baixo, mas não foi necessário muito tempo para chegar ao topo da pirâmide.
Destronar Américo de Sá era agora o seu maior desafio. Começou então a rodear-se de
amigos com algum prestígio no clube, procurando apoios para se candidatar. Tarefa que não
era fácil. Na altura, para se ser presidente de um clube de futebol era necessário ser-se um
empresário de sucesso e ter dinheiro disponível para enfrentar algumas situações, e esse não
era o caso de Pinto da Costa. Ele sabia-o como ninguém e procurou então apoiar-se em
pessoas abastadas economicamente, não dispensando o seu grande amigo, Ilídio Pinto.
Havia, no entanto, uma situação que era necessário ultrapassar. O Ilídio tinha-se
encostado ao Américo de Sá, mas PC sabia que ele estaria sempre do lado de quem tivesse o
poder e, com alguma facilidade, jogava sempre com um pau de dois bicos.
O certo é que Ilídio tinha o dinheiro, e PC iria necessitar desse apoio. Tinha também na mão
outra gente que vivia desafogadamente em termos financeiros e que por terem sido
preteridos por Américo de Sá se colocaram do seu lado, mas esses eram mais inteligentes e
não seria fácil arrancar-lhes o dinheiro sem lhes dar nada em troca.
Não podia também colocar em risco uma nova derrota. Tinha de ir à luta pela certa, e o
momento era propício porque se começava a notar um certa instabilidade no seio do clube.
Tudo servia para se atacar a gerência de Américo de Sá. Faziam-se assembleias gerais
agitadíssimas, com Pinto da Costa a colocar algumas pessoas estrategicamente no meio dos
sócios a criar a confusão.
Américo de Sá passou momentos de grande desespero, porque lhe era impossível
controlar a situação. Foi então que tomou consciência da existência de um jovem com
alguma história no clube. Reinaldo Teles, campeão nacional de boxe e na altura treinador, foi
a solução encontrada para controlar as agitadas assembleias gerais. Ex-pugilista, brigão,
chulo e nutrindo uma certa paixão por negócios ilícitos, ofereceu-se para arrumar a casa e
impor a ordem nas confusões programadas por Pinto da Costa. Era treinador de boxe do
clube e reuniu os seus rapazes para patrulharem a sala, e o certo é que com alguns murros e
cabeçadas acabou por conquistar o lugar de chefe da segurança de Américo de Sá.
Pinto da Costa temia-o, porque não era um brigão vulgar e muito menos um marginal
estúpido e incompetente. Reinaldo Teles tinha um espírito e uma personalidade muito
idênticos aos de PC. Dava as ordens para descascar á fartazana e depois surgia como o
apaziguador, o bom rapaz que anda tinha a ver com aquela violência. PC detestava-o, mas
viu nele a solução para o futuro.
Reinaldo Teles era um ás a esgrimir os punhos, sabia avaliar com grande exactidão a
capacidade dos seus adversários, e quando não os podia vencer trazia-os para junto de si.
Um anjo, este rapaz que veio bastante jovem de uma aldeia transmontana para servir numa
tasca de um tio. O estabelecimento estava aberto toda a noite, numa altura em que ainda
existiam poucas discotecas. E as que funcionavam em pleno estavam viradas para o alterno e
a prostituição. Mas R. Teles sabia que «putas e vinho verde» só combinam nas horas e nos
locais certos. Havia que tratar da vidinha.
Ajudava o seu tio pela madrugada dentro e vivia com entusiasmo as cenas de pancadaria
entre azeiteiros, putas e marginais. O seu sonho era um dia vir a ser como eles. Homens
valentes, com charme, e mulheres tratadas a pontapé a levarem-lhes o apuro da noite e o
que até tinham roubado ao prazer. Sobre as delícias do amor, Reinaldo propagandeava dotes
extraordinários, como fruto da leitura de um livrinho que comprara na Feira de Vandoma,
uma obra cujo título tinha algo a ver com cama (obviamente) e que ensinava a combinar o
beijo inclinado com o beijo pressionado. Essa era a matéria que Reinaldo dominava
perfeitamente, como já se disse, com destaque para a arte de beijar.
Mas ainda estava longe de ser o rei na noite, sendo por norma acordado por mais um
pedido da Bety ou da Lady, pois as putas por aqueles lados tinham todas nomes ingleses...
- Ó miúdo, serve-me aí uma sande de fígado com molho e cebola e um copo desse verde
rasca que o teu tio tem aí!
Reinaldo Teles não se deixava comover. Afinal, eram putas. Tinham de ser tratadas
assim. Enrugando a face, com os cantos da boca a quebrarem para baixo, fazia inchar o
peito, punha-se em bicos de pés na tentativa de imitar os chulos e atirava com o prato da
sande e o copo para a frente da mulher enquanto pensava: «Ainda vais trabalhar para mim».
Foi então que um indivíduo com cara de rato, esquelético e de cabelo oleoso, se foi
encostando á prostituta que Reinaldo servia e, com uma habilidade nata, meteu os garfos na
carteira e roubou-lhe o porta-moedas. Reinaldo, que estava por detrás do balcão a retirar da
montra de vidro um naco de polvo envolto em cebola, viu a cena e não perdeu a sua
oportunidade de brilhar. Saiu do balcão e, com determinação, agarrou o carteirista e evitou
que a Alzira, mais conhecida por Lady, ficasse sem os poucos tostões que o seu chulo lhe
deixou.
Apercebendo-se de toda a cena, a Alzira levantou a mão e deu um soco no carteirista
enquanto lhe dizia:
- Ah, meu filho da puta de choringa!
Sem tempo para pensar, Reinaldo Teles nem sequer hesitou quando se apercebeu que o
carteirista ia responder á agressão. Formando um salto, deu uma cabeçada seguida de uma
esquerda no choringa e este esparramou-se no chão sem vontade de se levantar.
Quando o pôde fazer, nem sequer olhou para trás, deitando a fugir pela rua abaixo. Os
presentes fartaram-se de gabar Reinaldo, não só pela sua coragem como também por aquela
esquerda indomável. A Alzira esqueceu-se de que tinha sido vítima de roubo e começou a
medir o miúdo de alto a baixo com um sorriso comprometedor e, olhando por cima do
ombro, disse-lhe quase num sussurro:
- Hoje tens direito a uma de graça!
- Com direito a beijo pressionado?- quis logo saber Reinaldo.
Que sim, disse ela. Reinaldo Teles não cabia em si. Puxou do pente que trazia no bolso
de trás das calças, passou-o pelos cabelos e não deixou ninguém perceber que ainda era
virgem. Pegou no resto do vinho que sobrou no copo da Alzira e emborcou-o de uma golada
enquanto lhe dizia:
- Estou-te com uma sede!
Quando fechou a tasca, lá estava a Lady á sua espera para uma madrugada de amor.
Mas estava, ainda, Reinaldo com a chave metida na porta, e já o chulo da Alzira lhe tocava
no ombro.
Onde pensas que vais meu filho. O estabelecimento já fechou. Se queres desenferrujar o
prego, espera para amanhã e não te esqueças de trazes trocado.
Reinaldo Teles ficou fora de si. Já estava a pensar com os tomates, e aquele gajo não
lhe podia vir estragar a festa. Olhou de alto a baixo o chulo. Fixou-o bem nos olhos e achou
que lhe podia dar uma tareia. A sua célebre esquerda saltou como um gancho e abateu-se
nos queixos do chulo. Ainda este não se tinha recomposto e já levava um meia dúzia de
socos, caindo KO no passeio.
Numa só noite, Reinaldo tinha abatido dois adversários. Alzira não hesitou. Estava cheia
daquele chulo, e Reinaldo serio o seu novo amante. Meteu-lhe o braço e, com firmeza, levouo
até ao seu quarto alugado, por trás da Igreja da Trindade. Por coincidência ou não, os
sinos tocaram a assinalar as cinco da matina e uma gata berrou de cio.
Reinaldo estava eufórico e, depois de ter descascado em dois duros da noite, não podia
de forma alguma deixar perceber que aquela era a sua primeira noite de amor. As suas
calças de bombazina preta começaram a ser afagadas por Alzira enquanto ela se despia.
Ao ver o seu par de mamas, Reinaldo não se aguentou mais e teve uma ejaculação. Lady
sentiu as calças humedecidas.
- Já te vieste?
Reinaldo, sem mostrar atrapalhação por aquele percalço, ensaiou uma vez mais a pose
de durão.
- Isto é só uma amostra. Vê se te preparas depressa.
E em que pressinha se foi a virgindade de Reinaldo Teles.
Alzira ficou encantada com toda aquela fogosidade e, mostrando-se submissa, pediu com
um certo carinho:
- A partir de hoje vais ser o meu chulo?
Reinaldo sorriu, enquanto puxava as calças para a cintura e apertava o cinto.
- Depois da sova que deu ao teu chulo, achas que ele teria coragem de aparecer? O teu
homem a partir de hoje, claro que sou eu.
Mas para que essa conquista ganhasse forma, havia muitas lutas para vencer. Os
pretendentes faziam fila porque o negócio estava mau e havia de aparecer um valentão a
conquistar os seus direitos da mesma forma que o fez Reinaldo.
Alzira gostava do miúdo, era forte e atrevido, mas para ficar com ele tinha de pensar
numa forma de o proteger. Reinaldo tinha punhos, mas faltava-lhe a experiência. De súbito,
veio a solução. Ela tinha um cliente que era treinador de boxe do maior clube da
cidade(Porto)e ia-lhe apresentar Reinaldo Teles para o rapaz poder ir lá fazer uns treinos.
Uma semana depois, o tal treinador de boxe disse a Alzira que Reinaldo tinha futuro. A
partir daí, quando as coisas aqueciam no «Ginginha», a tasca do seu tio, R. Teles fazia uns
treinos extra, passando a ser conhecido e respeitado. Depois de fechar a tasca, aproveitava a
boleia de um amigo e ia ter com a Alzira, que atacava em Santos Pousada.
Trazia o apuro e a rapariga. Os dois estavam apaixonados. O beijo pressionado passava
à história.
Reinaldo começou a somar êxitos no boxe e acabou por deixar o emprego na tasca do
seu tio para se colocar como segurança e porteiro numa casa de alternos. Foi aí que
conheceu a Luísa. Mas um dia, Alzira descobriu tudo, entrou pela boite dentro, localizou a
Luísa, que bebia uma garrafa de champanhe com um cliente enquanto este a beijava no
pescoço, pegou-lhe pelos cabelos, atirou-a por cima da mesa e armou por ali uma algazarra
tremenda.
Reinaldo Teles tentou acalmar as coisas. Não podia perder o emprego e lá convenceu
Alzira a ir-se embora, não sem antes esta prometer que matava a Luísa se ela continuasse
atrás do homem dela.
Reinaldo Teles tinha-se tornado num dos chulos mais importantes da cidade e, com a
ajuda da Luísa, acabou por comprar o seu próprio estabelecimento. O rapaz tinha jeito para o
negócio, e a Luísa tinha uma perspicácia tremenda para escolher as melhores putas.
Ambicioso, inteligente, hipócrita e já com algum poder económico, Reinaldo Teles tinha
apenas mais um sonho: ser campeão nacional de boxe. Ele era bom de punhos, mas havia
outros melhores.
Com algum sacrifício e habilidade, conseguiu chegar á fase que lhe permitiu disputar o
título. O seu adversário era poderoso e Teles não se podia arriscar a deixar fugir o seu sonho.
Sempre inclinado para negócios marginais, colocou logo em prática um plano diabólico. Ele
sabia que no boxe profissional a corrupção por parte de grupos marginais era uma prática
constante e quase normalizada, e num ápice resolveu o seu problema. Contactou o seu
adversário, negociou a vitória no terceiro "round" e um KO mal disfarçado deu-lhe a
oportunidade de saltar no ringue elevando as luvas em sinal de vitória. Era importante para o
seu negócio que os jornais noticiassem no dia seguinte que ele era o novo campeão nacional
de boxe. Aquele título significava respeito e medo. Os factores mais importantes para quem
quer gerir com tranquilidade uma casa de alternos e de prostituição. Este fora o seu
primeiro acto no mundo da corrupção, e Teles ficou fascinado com o poder do dinheiro.
Afinal, ele tinha feito um investimento altamente rentável. Pagou para conquistar o título,
realizou o seu sonho e duplicou a facturação no seu estabelecimento. Ninguém se arriscava a
criar conflitos na sua área de alternos e muito menos a deixar contas penduradas. Os punhos
de um campeão eram sempre temidos.

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