JOGOS PARA A ETERNIDADE (10) - Roma-Benfica, 1-2 / 1983
Em cerca de meia centena de presenças nas competições europeias, muitas foram as tardes e noites de glória vividas pelo Benfica. Vitórias de grande significado, momentos históricos, grandes exibições.
Não vivi os títulos europeus do clube, mas desde tenra idade que os mesmos marcaram o meu benfiquismo, o que sinto até pelo fascínio com que sempre acompanhei as competições internacionais, colocando-as normalmente acima da importância das domésticas – não sendo neste particular certamente o convencional adepto português, que gosta é da guerrilha e da rivalidadezinha com o vizinho, amigo ou colega de trabalho, normalmente traduzida nos casos de arbitragem, pois o futebol (e a vida) para mim sempre foi paixão e não ódio, e acho que quem me lê com frequência já deve ter percebido isso.
Sem títulos, foram naturalmente as finais – ou o acesso às mesmas – os momentos de gala da minha vivência clubista. Mas ocasiões houve em que foi o próprio brilhantismo das exibições, e a categoria das vitórias, a marcar as páginas da história. No dia 2 de Março de 1983 viveu-se uma dessas jornadas.
Disputava-se a primeira mão dos quartos-de-final da Taça Uefa – prova em que o Benfica chegaria à final com o Anderlecht -, e o adversário era a poderosa A.S.Roma, recheada de internacionais (onde sobressaia o brasileiro Falcão), que dois meses depois se sagraria campeã de Itália (à frente da Juventus de Zoff, Rossi, Boniek e Platini), e na época seguinte se tornaria vice-campeã europeia, ao perder por penáltis, em pleno Olímpico, a sua única final da Taça dos Campeões para o Liverpool.
Quando meses antes foi sorteado o quadro de jogos, o cepticismo instalou-se entre a generalidade dos observadores. Além de essa ser provavelmente a melhor Roma de sempre, é preciso lembrar que o futebol italiano era na altura o “El Dorado” de tudo quanto era craque à escala mundial. Zico, Sócrates, Platini, Maradona, Rummenigge, entre muitos outros, davam ao Cálcio uma tonalidade de autêntica NBA do futebol internacional, e qualquer uma das suas equipas de topo situava-se num plano claramente acima do pobre potencial do futebol português da altura que, recorde-se, havia quinze anos não chegava a uma única final europeia de clubes, nem a qualquer fase final de selecções, perdurando a este nível a saga de 1966 como a sua única presença internacional de relevo.
A época do Benfica estava no entanto a ser avassaladora. No campeonato nacional seguia de vento em popa, ganhando com clareza e praticando o melhor futebol que alguma vez terá praticado no pós-Eusébio, enquanto que na Taça Uefa levava o impressionante pecúlio de cinco vitórias e um empate em seis jogos. Era a primeira temporada de Eriksson no clube, e o seu talento, inovação e liderança estavam a revolucionar o Benfica e, em certa medida, também o futebol português, que ao longo da década seguinte muito beneficiaria com esse trabalho. Jogadores como Humberto Coelho, João Alves, Chalana, Diamantino, Shéu, Nené ou Carlos Manuel atingiam o seu apogeu competitivo, exprimindo toda a sua capacidade técnica, paralelamente a uma superior condição física e mental incutida pelos métodos do jovem nórdico. Mesmo assim a Roma era, pelos motivos acima descritos, claramente favorita.
A primeira mão foi no Olímpico – ainda de configuração bem diferente da actual -, e não sei bem porquê o jogo disputou-se numa quarta-feira às 14.00 horas. Logo, sendo época escolar, havia aqui um complicado problema para resolver. Depois de puxar pela imaginação, eis que surgiu a luminosa ideia de simular uma gripe – era impensável faltar ao colégio onde andava sem assentimento familiar. Uma má disposição à hora de almoço, um termómetro na axila, e com o maior método e rigor, uma discreta aproximação do mesmo a um aquecedor. 38,5º ! Era tudo o
que precisava. Poucos minutos depois estava de roupão e pantufas na sala diante do televisor. No dia seguinte estaria totalmente recuperado, e mais bem encarado que nunca.
Não me perdoaria a mim próprio para o resto dos meus dias se não tivesse visto um jogo como aquele: o Benfica terá feito “apenas” a sua melhor exibição dos últimos trinta anos. Pelo menos foi assim que ficou inscrito na incontornável força da lenda, mas a realidade não terá andado lá muito longe - Arsenal em 1991, Leverkusen em 1994 ou Liverpool em 2006 são os únicos momentos que talvez se lhe possam comparar.
Não sei se foi da visita ao Papa na véspera, mas tudo saiu bem aos encarnados – que aliás até jogaram de branco. Um futebol de sonho, dois golos plenos de classe, uma vitória incontestável e a eliminatória muito bem encaminhada.
O onze escalado foi o seguinte: Bento, Pietra, Humberto Coelho, Bastos Lopes, Álvaro, Shéu, Carlos Manuel, João Alves, Chalana, Nené e Filipovic. Entrariam depois Diamantino e Stromberg. Na Roma, orientada pelo também sueco Niels Liedholm, alinhavam Tancredi, Nela, Vierchowood, Maldera, Di Bartolomei, Prohaska, Toninho Cerezzo, Falcão, Ancelotti, Bruno Conti e Pruzzo. Jogaram também Iorio e Chierico.
Logo de início o Benfica assumiu o controlo do jogo, e perto do intervalo, na sequência de um lance protagonizado por João Alves (o “luvas pretas”), Filipovic abriu o marcador. O golo deu ainda maior tranquilidade à equipa, que próximo do quarto-de-hora da segunda parte, novamente pelo ponta-de-lança jugoslavo – na sua melhor época de sempre, que lhe valeria nove golos na Uefa -, desta vez a cruzamento de Fernando Chalana, avolumou a conta. Nem o golo, de penálti, do capitão romano Angelo Di Bartolomei já nos instantes finais retirou o brilho a uma tarde de sonho. Quinze dias mais tarde a Roma puxou dos galões e quase silenciava a Luz. Conseguiu empatar 1-1, desperdiçando uma grande ocasião de golo nos últimos instantes, mas já era tarde para os italianos. O resultado da primeira mão revelara-se-lhes fatal. O Benfica seguia em frente, eliminaria também o Universitatea Craiova, caindo apenas na final aos pés do melhor Anderlecht de todos os tempos.
Não sei se o jogo já alguma vez passou na RTP Memória. Se alguém tiver uma gravação eu adoraria revê-lo, 24 anos depois. Termino com as palavras do médio João Alves acerca dessa partida: «Foi o meu jogo mais marcante, a nível internacional, uma final antecipada. A Roma na altura estava na mó de cima, era uma grande equipa, composta por grandes internacionais, no meio-campo tinham o Prohaska e o Falcão, que eram as estrelas da companhia, e ainda o Bruno Conti. Lembro-me que a comunicação social deu destaque aos jogadores que, de um lado e do outro, tinham a batuta da equipa, no caso do Benfica eu, no caso da Roma o Falcão. Era também a primeira vez que o Eriksson, como treinador sueco, ia defrontar o Nils Liedholm, que também era sueco. Fizemos um jogo fantástico, quase um jogo perfeito. Sei que estive ligado aos dois golos, fiz um passe para o primeiro golo de Filipovic e também estive no segundo. O que foi mais marcante é que quem esteve nos lances dos golos, eu e o Filipovic, não jogou depois a final com o Anderlecht. Pela imponência do Estádio Olímpico, pela quantidade de jogadores de grande nomeada, foi um jogo inolvidável. Fiz uma exibição, passe o auto-elogio, excepcional, a equipa também jogou que foi uma maravilha, só assim é que podíamos ganhar o jogo a uma formação daquela categoria onde também jogavam o actual treinador do Milan, o Ancelotti, e o di Bartolomei. Foi talvez uma das exibições mais perfeitas que fiz e mereci os elogios da comunicação social italiana e portuguesa. Foi um jogo onde tudo saiu bem.»
Que sirva de inspiração para o Sporting…
Fotos: "Memórias Encarnadas", "ASRultra" e Diversos
Não vivi os títulos europeus do clube, mas desde tenra idade que os mesmos marcaram o meu benfiquismo, o que sinto até pelo fascínio com que sempre acompanhei as competições internacionais, colocando-as normalmente acima da importância das domésticas – não sendo neste particular certamente o convencional adepto português, que gosta é da guerrilha e da rivalidadezinha com o vizinho, amigo ou colega de trabalho, normalmente traduzida nos casos de arbitragem, pois o futebol (e a vida) para mim sempre foi paixão e não ódio, e acho que quem me lê com frequência já deve ter percebido isso.
Sem títulos, foram naturalmente as finais – ou o acesso às mesmas – os momentos de gala da minha vivência clubista. Mas ocasiões houve em que foi o próprio brilhantismo das exibições, e a categoria das vitórias, a marcar as páginas da história. No dia 2 de Março de 1983 viveu-se uma dessas jornadas.
Disputava-se a primeira mão dos quartos-de-final da Taça Uefa – prova em que o Benfica chegaria à final com o Anderlecht -, e o adversário era a poderosa A.S.Roma, recheada de internacionais (onde sobressaia o brasileiro Falcão), que dois meses depois se sagraria campeã de Itália (à frente da Juventus de Zoff, Rossi, Boniek e Platini), e na época seguinte se tornaria vice-campeã europeia, ao perder por penáltis, em pleno Olímpico, a sua única final da Taça dos Campeões para o Liverpool.
Quando meses antes foi sorteado o quadro de jogos, o cepticismo instalou-se entre a generalidade dos observadores. Além de essa ser provavelmente a melhor Roma de sempre, é preciso lembrar que o futebol italiano era na altura o “El Dorado” de tudo quanto era craque à escala mundial. Zico, Sócrates, Platini, Maradona, Rummenigge, entre muitos outros, davam ao Cálcio uma tonalidade de autêntica NBA do futebol internacional, e qualquer uma das suas equipas de topo situava-se num plano claramente acima do pobre potencial do futebol português da altura que, recorde-se, havia quinze anos não chegava a uma única final europeia de clubes, nem a qualquer fase final de selecções, perdurando a este nível a saga de 1966 como a sua única presença internacional de relevo.
A época do Benfica estava no entanto a ser avassaladora. No campeonato nacional seguia de vento em popa, ganhando com clareza e praticando o melhor futebol que alguma vez terá praticado no pós-Eusébio, enquanto que na Taça Uefa levava o impressionante pecúlio de cinco vitórias e um empate em seis jogos. Era a primeira temporada de Eriksson no clube, e o seu talento, inovação e liderança estavam a revolucionar o Benfica e, em certa medida, também o futebol português, que ao longo da década seguinte muito beneficiaria com esse trabalho. Jogadores como Humberto Coelho, João Alves, Chalana, Diamantino, Shéu, Nené ou Carlos Manuel atingiam o seu apogeu competitivo, exprimindo toda a sua capacidade técnica, paralelamente a uma superior condição física e mental incutida pelos métodos do jovem nórdico. Mesmo assim a Roma era, pelos motivos acima descritos, claramente favorita.
A primeira mão foi no Olímpico – ainda de configuração bem diferente da actual -, e não sei bem porquê o jogo disputou-se numa quarta-feira às 14.00 horas. Logo, sendo época escolar, havia aqui um complicado problema para resolver. Depois de puxar pela imaginação, eis que surgiu a luminosa ideia de simular uma gripe – era impensável faltar ao colégio onde andava sem assentimento familiar. Uma má disposição à hora de almoço, um termómetro na axila, e com o maior método e rigor, uma discreta aproximação do mesmo a um aquecedor. 38,5º ! Era tudo o
que precisava. Poucos minutos depois estava de roupão e pantufas na sala diante do televisor. No dia seguinte estaria totalmente recuperado, e mais bem encarado que nunca.
Não me perdoaria a mim próprio para o resto dos meus dias se não tivesse visto um jogo como aquele: o Benfica terá feito “apenas” a sua melhor exibição dos últimos trinta anos. Pelo menos foi assim que ficou inscrito na incontornável força da lenda, mas a realidade não terá andado lá muito longe - Arsenal em 1991, Leverkusen em 1994 ou Liverpool em 2006 são os únicos momentos que talvez se lhe possam comparar.
Não sei se foi da visita ao Papa na véspera, mas tudo saiu bem aos encarnados – que aliás até jogaram de branco. Um futebol de sonho, dois golos plenos de classe, uma vitória incontestável e a eliminatória muito bem encaminhada.
O onze escalado foi o seguinte: Bento, Pietra, Humberto Coelho, Bastos Lopes, Álvaro, Shéu, Carlos Manuel, João Alves, Chalana, Nené e Filipovic. Entrariam depois Diamantino e Stromberg. Na Roma, orientada pelo também sueco Niels Liedholm, alinhavam Tancredi, Nela, Vierchowood, Maldera, Di Bartolomei, Prohaska, Toninho Cerezzo, Falcão, Ancelotti, Bruno Conti e Pruzzo. Jogaram também Iorio e Chierico.
Logo de início o Benfica assumiu o controlo do jogo, e perto do intervalo, na sequência de um lance protagonizado por João Alves (o “luvas pretas”), Filipovic abriu o marcador. O golo deu ainda maior tranquilidade à equipa, que próximo do quarto-de-hora da segunda parte, novamente pelo ponta-de-lança jugoslavo – na sua melhor época de sempre, que lhe valeria nove golos na Uefa -, desta vez a cruzamento de Fernando Chalana, avolumou a conta. Nem o golo, de penálti, do capitão romano Angelo Di Bartolomei já nos instantes finais retirou o brilho a uma tarde de sonho. Quinze dias mais tarde a Roma puxou dos galões e quase silenciava a Luz. Conseguiu empatar 1-1, desperdiçando uma grande ocasião de golo nos últimos instantes, mas já era tarde para os italianos. O resultado da primeira mão revelara-se-lhes fatal. O Benfica seguia em frente, eliminaria também o Universitatea Craiova, caindo apenas na final aos pés do melhor Anderlecht de todos os tempos.
Não sei se o jogo já alguma vez passou na RTP Memória. Se alguém tiver uma gravação eu adoraria revê-lo, 24 anos depois. Termino com as palavras do médio João Alves acerca dessa partida: «Foi o meu jogo mais marcante, a nível internacional, uma final antecipada. A Roma na altura estava na mó de cima, era uma grande equipa, composta por grandes internacionais, no meio-campo tinham o Prohaska e o Falcão, que eram as estrelas da companhia, e ainda o Bruno Conti. Lembro-me que a comunicação social deu destaque aos jogadores que, de um lado e do outro, tinham a batuta da equipa, no caso do Benfica eu, no caso da Roma o Falcão. Era também a primeira vez que o Eriksson, como treinador sueco, ia defrontar o Nils Liedholm, que também era sueco. Fizemos um jogo fantástico, quase um jogo perfeito. Sei que estive ligado aos dois golos, fiz um passe para o primeiro golo de Filipovic e também estive no segundo. O que foi mais marcante é que quem esteve nos lances dos golos, eu e o Filipovic, não jogou depois a final com o Anderlecht. Pela imponência do Estádio Olímpico, pela quantidade de jogadores de grande nomeada, foi um jogo inolvidável. Fiz uma exibição, passe o auto-elogio, excepcional, a equipa também jogou que foi uma maravilha, só assim é que podíamos ganhar o jogo a uma formação daquela categoria onde também jogavam o actual treinador do Milan, o Ancelotti, e o di Bartolomei. Foi talvez uma das exibições mais perfeitas que fiz e mereci os elogios da comunicação social italiana e portuguesa. Foi um jogo onde tudo saiu bem.»
Que sirva de inspiração para o Sporting…
Fotos: "Memórias Encarnadas", "ASRultra" e Diversos
2 comentários:
LF, grande-grande jogo, grande tarde, grande equipa! Na (nova) colecção de cromos que o Blog www.futebolinesquecivel.blogspot.com vai editar (lá para Janeiro), vai estar um cromo fantástico feito a partir de uma imagem magnífica deste jogo... Para veres depois... Abrs.
Nas véspreas Joaquim Rita escreveu uma crónica n'A Bola em que dizia como o Benfica devia jogar. O benfica jogou como o Joaquim Rita disse e ganhou...
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