GOLPE DE ESTÁDIO (4)
Pinto da Costa tinha a consciência de que era ele quem mandava no futebol. Aos poucos,
apoderou-se dos centros de decisão mais importantes, oferecendo lugares a pessoas da sua
inteira confiança cuja personalidade era marcada pela ausência de escrúpulos, dignidade e
vergonha, transformando-as em autênticas marionetas.
A Olivedesportos e a agência de viagens(Cosmos) sobrefacturavam tudo o que estava
ligado ao futebol, e ninguém se queixava. Os contratos federativos eram assinados sem que
a concorrência fosse levada em linha de conta, e como Pinto da Costa falira todas as suas
empresas, queimando milhares de contos ganhos à custa do seu clube, tinha de apostar forte
nesta sua nova estrutura financeira. Mas os inimigos que fora deixando atrás de si,
principalmente aqueles que discordavam da forma pouco honesta como ele geria esta
situação, procuravam todas as provas com o sentido de o desmascarar. Devido às imensas
vigarices que fez, Pinto da Costa estava impedido de passar cheques e constituir qualquer
empresa, mas rodeou-se de gente da sua inteira confiança para lhe dar cobertura para os
seus negócios e não deixar rastos para qualquer acusação.
Já tinha organizado o seu braço armado, cuja chefia do sector entregou ao irmão de
Reinaldo Teles. O medo silenciava os que tinham vontade de falar. Constituiu depois o braço
jurídico, rodeando-se de advogados de poucos escrúpulos, mas peritos em matéria de crime,
que lhe davam todos os conselhos necessários à gestão da situação, bem como as fórmulas
para camuflar todas as provas capazes de pôr a nu os processos marginais utilizados para a
soma dos dividendos. A cobertura política fechava o círculo.
Pinto da Costa achava-se cada vez mais forte e impenetrável. A sua vaidade levou-o
mesmo a pensar que, pelo menos, no Norte, ninguém tinha mais poder do que ele, e o certo
é que, mesmo sabendo-se dos negócios ilícitos e ligações a pessoas como Reinaldo Teles,
numa sociedade discriminatória e preconceituosa, toda a gente vergava a espinha na
tentativa de poder servir o dono do futebol.
O facto de Reinaldo Teles ser o seu homem de confiança e de estar fortemente envolvido
em tráfico de carne branca, com a importação maciça de prostitutas brasileiras para o seu
bar e para outros, enquanto alguns dos seus familiares surgiam envolvidos em negócios de
droga, não tinha o mínimo peso no conceito das grandes famílias. Reinaldo Teles ganhou
peso e prestígio, e mesmo a sua mulher, Luísa, apesar de se conhecer a sua responsabilidade
na gestão do putedo do seu bar, era acolhida no seio do clube e na sociedade nortenha como
uma grande dama, merecendo, inclusive, por parte das mulheres de outros vices do clube,
com muito maior peso moral e sem passado na Rua Santos Pousada, um acolhimento fora do
vulgar. Esta empatia, dizia-se, ficava a dever-se a algumas festas livres organizadas por Luísa
nos quartos de hotéis durante as viagens do clube ao estrangeiro. Luísa já há muito que tinha
perdido o gosto pelos homens. E as mulheres começaram a ser a sua grande paixão.
Reinaldo Teles não parava de subir na estrutura do clube e na consideração de PC. O
jovem que muitos anos antes tinha vindo servir na tasca do tio, estava em verdadeira
ascensão. Já ninguém o conseguia parar. O trabalho que desenvolvera durante cerca de três
anos a levar prendas aos árbitros e familiares em dias de aniversário fizera com que
angariasse grandes amizades no sector, que se foram prolongando em visitas ao seu bar.
Reinaldo Teles sabia como gerir essa situação:
-Presidente, há duas coisas a que os homens não resistem: mulheres e dinheiro.
-Eu que o diga. Só de me lembrar que andei 40 anos in vitro, até me dá agonia. Foste tu
que me deste a conhecer a vida e que me ensinaste a tirar partido dela.
-Reinaldo Teles tinha em mente um plano que antevia ser bastante rentável e discutiu-o
com o presidente.
-A maior parte dos árbitros está na minha mão. Tenho-lhes arranjado umas gajas, e no
meu bar nenhum deles paga copos. Penso que chegou a altura de rentabilizar esse meu
investimento, e podemos dividir os lucros.
Pinto da Costa ouviu com atenção o plano de Reinaldo, mas não respondeu logo.
Levantou-se da sua secretária, dirigiu-se a um gabinete ao lado, tropeçou no fio do telefone e
quando voltou disse com uma calma impressionante:
-Esse assunto é muito delicado e perigoso. Eu não posso aparecer nem sequer ser
suspeito. Não quero o mínimo de contactos com qualquer árbitro. Trata tu dessa situação e
vais-me informando de como tudo se está a passar. Ah!... Não te esqueças dos lucros.
-Não se preocupe presidente. Vou tratar das coisas à minha maneira.
O negócio do bar de Reinaldo Teles estava em completa ascensão. As mulheres
contratadas eram seleccionadas entre as melhores e quem fosse amigo do patrão não tinha
de pagar tanto champanhe para poder usufruir de uma boa companhia. Alguns dirigentes de
futebol tornaram-se clientes assíduos do bar de Reinaldo e começaram a reparar nos
estreitos laços de amizade que existiam entre os árbitros e Reinaldo.
Ia começar mais uma sessão de strip-tease, quando o empregado colocou uma garrafa
ainda intacta de whisky velho sobre uma mesa. Encheu dois copos, perguntou aos clientes se
queriam muito gelo, e um deles, acenando com a cabeça, pediu coca-cola para misturar.
Quando o empregado se preparava para rodar sobre os calcanhares, o outro pediu:
-Diga por favor ao Reinaldo Teles se pode vir aqui à mesa tomar um whisky comigo.
-Dou já o recado ao patrão - disse o empregado, enquanto se dirigia para o balcão.
Reinaldo olho por cima das mesas para verificar quem o tinha convidado, e viu que se
tratava do presidente e o chefe de departamento de futebol de um clube nortenho.
Largou um sorriso disfarçado e fez sinal de que ia já lá ter.
Começou o strip-tease e, na parte final, o presidente do tal clube já tinha esquecido o
futebol, concentrando-se noutras jogadas.
-Mas que ricas mamas a gaja tem!
-Quando o Reinaldo vier cá, vamos mandá-la vir para a nossa mesa.
Vinte minutos depois, Reinaldo Teles sentava-se na mesa dos dois elementos que o
tinham convidado, e o tal presidente, sem esquecer as mamas da striper, perguntou de
imediato:
-A gaja não pode vir para a nossa mesa?
-Quem? A striper?
-Essa mesmo.
-Deixe-se disso. Tenho aqui coisa muito melhor, e de qualquer forma não é possível
chamá-la porque ela tem outro espectáculo no «Pérola Negra» e já se foi embora.
Reinaldo Teles olhou para trás, fez um gesto ao seu empregado para se aproximar,
falando-lhe no ouvido. Dois minutos depois estavam a sentar-se na mesa duas belas
raparigas.
-Diga se isto não é muito melhor.
Os dois comparsas olharam-se de frente e concordaram em surdina. Veio champanhe
para a mesa, e as carícias das mulheres fizeram esquecer por completo o que tinha motivado
os dois elementos a chamarem Reinaldo.
Discretamente, Reinaldo saiu da mesa e foi juntar-se a outros clientes.
No dia seguinte, os mesmos indivíduos lá estavam a marcar presença:
-Desta vez temos mesmo de falar com o homem, por causa do árbitro de domingo -
disse o presidente, afundando os dedos nas coxas de uma rapariga.
O chefe de departamento de futebol, enquanto concordava com a ideia, lançava um
sorriso à miúda do dia anterior.
Não esteja com essas merdas. Hoje vamos falar de coisas sérias.
O empregado trouxe a garrafa com o whisky que sobrara do dia anterior e levou o
mesmo recado ao patrão.
Reinaldo Teles sentou-se novamente na mesa dos clientes do dia anterior e não deixou
de perguntar:
-Então, gostaram do material de ontem?
-Gostamos, mas hoje queremos outra coisa...
-Isso arranja-se. Há ainda coisa melhor.
-Não é disso que estamos a falar.
-Ai não? Então de que é?
-Você é amigo de tantos árbitros e nós no domingo precisamos de ganhar. Podia falar
com o António Batista... e é só dizer quanto quer.
Reinaldo não respondeu logo, mas passados uns segundos levou aos lábios o copo que
trazia na mão e acabou por dizer:
-Amanhã falo com ele, sem falta. Deixe isso comigo.
-Quanto é que temos de dar?
-Depois combina-se isso.
No dia seguinte, Reinaldo estava a telefonar para o emprego do árbitro.
-Ó pá, no domingo vais apitar um jogo dum gajo muito meu amigo. Não quero pedir
favor nenhum, mas pelo menos não o prejudiques.
-Ele pode ficar descansado, e se for necessário, até se dá uma ajudazinha. Sem
escândalos, para não haver merdas.
-Isso é o ideal. Porta-te bem, que vais receber uma boa prenda.
-Fica à vontade, que eu trato do resto.
Radiante com a situação, Reinaldo viu logo que aquilo era um negócio dos diabos. Não
tinha dúvidas, eram favas contadas.
Telefonou ao presidente do tal clube e não esteve com meias medidas.
-Está tudo resolvido. Não vai ser por causa do árbitro que vocês vão perder. Ele diz que
vai dar uma ajuda, mas não entra em escândalos. Os vossos jogadores que se esforcem, que
caiam na área, que de resto não vai haver problema.
-E quanto é que temos de dar ao homem?
-Hoje, sem falta, venham ao meu bar e tragam 800 dele, que eu é que me encarrego de
dar o bolo ao homem.
-Reinaldo, está combinado.
Nesse dia à noite lá estavam os dois com o cheque, que entregaram directamente a
Reinaldo Teles. Reinaldo estava com Jorge Gomes, seu amigo de todos os dias e das grandes
farras. Gomes era o homem da sua confiança e o pombo-correio das notícias que mais
interessavam.
Reinaldo Teles resolveu abrir-se com o amigo.
-O Mesquita, o presidente do clube...
-Já sei quem é. Aquele que esteve um dia destes aí - atirou Jorge Gomes.
-Veio falar comigo para eu combinar com o árbitro do jogo dele de domingo. Já está
tudo acertado. O homem entregou-me agora 800 contos, mas tenho um problema! No
domingo jogamos fora e não vou poder estar nesse jogo. Tu é que podias ir lá e entregar o
dinheiro ao árbitro no final do jogo. Vais jantar com ele. Ninguém te topa e entregas-lhe a
pasta. Mas não é todo. Ele leva quinhentinhos, e o resto é para mim e tu também tens a tua
parte.
Conforme o combinado, no domingo lá estava o Jorge Gomes. O jogo correu às mil
maravilhas, e o clube ganhou sem dificuldades. Verificando que aquilo tinha sido fácil de
mais, Jorge Gomes começou a pensar que era uma dor de alma estar a dar ao árbitro os 500
contos, e a partir daí tomou uma resolução. Encontrou-se com o árbitro no final da partida,
foi jantar com ele e os fiscais de linha, pagou a conta e no final disse:
-Amanhã, passem pelo bar do Reinaldo para beberem um copo, que ele tem lá uma
prenda para vocês.
O árbitro ficou todo contente e Jorge Gomes também.
Na segunda-feira de tarde passou por uma ourivesaria, comprou um relógio de ouro que
custou 200 contos e foi ter com Reinaldo já no final da tarde.
-Então, correu tudo bem ontem? - perguntou Reinaldo.
-Às mil maravilhas. Mas não dei a pasta aos homens.
-O quê? Não deste a pasta aos árbitros? Porquê?
-Tem calma, não te irrites. Aquilo foi simples de mais. O árbitro quase não teve de fazer
nada para dar a vitória aos gajos. No final fui jantar com os árbitros e disse-lhes para eles
passarem por cá hoje e que tu lhes darás uma prenda.
-E o que é que lhes vou dar?
-Já tratei de tudo. Fui comprar um relógio de ouro. Está aqui. É bonito, não é? Custou
200 contos, e agora guardas o resto. Não te preocupes, que ele vai ficar todo contente. Eu já
me apercebi disso ontem.
Quando o árbitro entrou no bar, Reinaldo não estava nada à vontade. Mas, quando lhe
ofereceu o relógio de ouro e viu o árbitro de olhos esbugalhados, começou a ficar mais
calmo. O Jorge Gomes afinal tinha razão. Ele ficou todo contente.
-Isto é para você não se atrasar na corrida para internacional - disse Reinaldo ao árbitro
em questão.
-Obrigado, amigo, e já sabe que pode contar comigo todos os segundos - agradeceu o
homem que se sentava no outro lado da mesa, já agarrado a uma miúda que era a novidade
da noite.
Mais adiante, Reinaldo pôde finalmente falar a sós com Jorge Gomes.
-Mas que grande negócio, este!
-Das oitocentas broas ficamos com seiscentinhos sem trabalho nenhum, e ainda por cima
o presidente telefonou-me ao princípio da tarde a agradecer-me. Mas que grande negócio!
Jorge Gomes tinha mostrado eficiência, e a partir daquele momento já não se colocava a
hipótese de ele poder vir a ficar de fora de novos negócios.
-Tens começar a trabalhar comigo. Deixa lá isso do jornalismo, que eu vou falar com o
presidente e vamos arranjar-te um lugar.
Jorge Gomes, que tinha ficado com 150 contos do bolo, aceitou logo o convite, e
passados alguns dias já estava ao serviço do clube de Reinaldo e a colaborar directamente
com Pinto da Costa, que entretanto tinha tido conhecimento dos predicados do rapaz. O
negócio estava montado e era necessário dar um melhor andamento à situação. O presidente
que tinha dado os 800 contos passou a ir mais vezes ao bar e a ter mais encontros com
Reinaldo.
-Você é um tipo porreirinho. Quando quisermos mais um favorzito voltamos a falar
consigo, doutor. OK?
-O que quiser. Vocês já sabem que faço isto desinteressadamente. Estou sempre
disposto a ajudar os meus amigos.
Discrição é coisa que não existe no seio dos dirigentes de futebol, e Reinaldo sabia muito
bem disso. Por isso, a notícia correu em rastilho rápido e depressa se ficou a saber que quem
quisesse uns favores no mundo da arbitragem só tinha de falar com o Reinaldo.
-Ele é um espectáculo. Conhece toda a gente.
O bar do Reinaldo começou a ser mais frequentado por dirigentes do nosso futebol. O
volume de negócios aumentou e os pedidos não se fizeram esperar. Jorge Gomes estava
dentro de todo o sistema, e os dirigentes já falavam também com ele. Parecia um mundo de
apostas clandestinas, mas era evidente a desorganização do sistema. Não havia, no entanto,
grande problemas, porque tudo era feito num círculo muito restrito.
Reinaldo Teles estava a apalpar terreno, não sabendo muito bem até onde podia ir e
com que árbitros podia negociar à vontade. Alguns deles, principalmente árbitros da capital,
passaram, entretanto, a frequentar o seu bar nas deslocações que faziam ao Norte. Um
deles, durante uma daquelas visitas de cortesia em dia de aniversário, pediu mesmo a
Reinaldo que meses mais tarde fosse padrinho da sua filha que iria nascer. Começava a ficar
tudo controlado. As noites de orgia sucediam-se nos fins-de-semana mais quentes, e o
negócio prosperava.
-Isto é o que eu sempre disse. Ninguém resiste às mulheres e ao dinheiro - filosofava
Reinaldo, do alto do seu banco do bar, mexendo os cubos de gelo e deitando um olhar de
paxá ao seu harém, então em plena laboração, quer na pista quer nos locais menos
iluminados do bar.
Luísa Teles, por sua vez, também estava entusiasmada com o negócio. Era dinheiro que
entrava, sem impostos, e ela sabia como escolher as melhores mulheres para os árbitros,
deixando-os agarrados a grandes momentos de felicidade. Reinaldo Teles estava a tornar-se
num expert em arbitragem e nos seus negócios marginais. E acabou por cimentar a sua fama
quando, em vésperas de um jogo internacional no qual o seu clube participava, lhe coube,
como sempre, a missão de proporcionar à equipa da arbitragem momentos de grande prazer.
O trio de arbitragem para esse jogo era escocês, e esse foi um pormenor que passou a
Reinaldo, que estava longe de pensar que o facto de os homens usarem sais pudesse
transformar a sua virilidade. Por isso, preparou para os visitantes três miúdas de estalo, com
a particularidade de uma delas se assumir como especialista na «tripla», fazendo também
cenas lésbicas.
Quando lhes apresentaram três bonitas raparigas, os fiscais de linha ficaram de olhos em
bico e começaram logo a babar-se, mas o árbitro fez má cara e mostrou a intenção de se
retirar. Reinaldo foi chamado à pressa para resolver aquela situação e, em menos de 20
minutos, foi a uma discoteca sua conhecida, trouxe um barman de bom porte atlético e ar de
machão latino. Com bigode descaído nos cantos, cabelo liso e tez morena e com um gosto
muito especial em comer machos, a presa cumpriu na perfeição os desejos do caçador
escocês.
O episódio foi muito comentado, e Reinaldo esteve duas horas a receber telefonemas de
parabéns. No seu gabinete, com a gata ao colo, Pinto da Costa sorria e pensava para os seus
botões:
-É deste tipo de pessoas que eu gosto. Capazes de resolver as mais intrincadas situações
e no mais curto espaço de tempo.
Era a afirmação em absoluto de Reinaldo Teles no mundo da arbitragem.
O bar de Reinaldo começou a ser ponto de encontro para aqueles que queriam usufruir
dos favores da arbitragem. Dirigentes e árbitros encontravam-se assiduamente no local, mas
nunca tinham um contacto directo, uma situação que foi sempre muito bem controlada, para
que não houvesse fugas de informação, tanto em relação a favores como aos preços
estipulados.
Lentamente, foi criada uma bem organizada rede de corrupção na arbitragem gerida, por
cima, por Reinaldo Teles, contando este com um assistente directo: Jorge Gomes. Os árbitros
das mais variadas regiões, logo que pisavam o chão da cidade, iam de imediato ao encontro
de Reinaldo. Não pediam nada, e muito menos ofereciam qualquer tipo de favor;
aguardavam antes, pacientemente, por uma abordagem. No início, estabeleceu-se uma certa
confusão promíscua no negócio, e esta situação não era a mais aconselhável. As pessoas
começavam a falar de mais, pois já nada passava despercebido, e Reinaldo Teles teve de
reorganizar o negócio, colocando as cartas na mesa de Pinto da Costa.
-Eles parecem moscas a cair no meu bar. A coisa já está a dar muita bronca.
-Que coisa?
-Aquele negócio dos árbitros. Começou a insinuar-se que eu era capaz de resolver tudo,
e os gajos não me largam. São os dirigentes de um lado e os árbitros do outro. Nunca pensei
que esta situação pudesse atingir este nível. Uns só querem vitórias; e os outros, dinheiro...
-Deixa lá. Ao menos, fica toda a gente satisfeita. Esse negócio tem de começar a se
gerido de uma forma mais segura. Isso vai dar muito dinheiro, mas é necessário saber fazer
as coisas. Roma e Pavia não se fizeram num dia.
Estava dado o mote para o arranque de uma organização mais capaz e eficiente, e o
plano foi colocado em marcha. Havia receptividade de parte, a parte e isso já era um bom
avanço. O tempo em que o clube gastava dinheiro para controlar algumas arbitragens já
tinha passado. Os árbitros sabiam exactamente onde estava o poder e como se chegar a ele,
e, se, em paralelo, se podia ganhar dinheiro, muito melhor.
Pinto da Costa estava consciente de que todos o temiam. Não tinha o mínimo de
pruridos quando queria esmagar um inimigo. Não fazia ameaças, mas os que se mostrassem
contra o seu poder podiam ter a certeza de que obteriam uma resposta de acordo com a
situação e sem qualquer tipo de contemplações. Perante tal quadro, era muito mais
proveitoso estar ligado a Reinaldo Teles. Para além do dinheiro que podiam ganhar, tinham
toda a cobertura possível dentro do Conselho de Arbitragem, área onde Pinto da Costa e os
seus pares se moviam com bastante à-vontade, contando com a colaboração de um
presidente da sua inteira confiança. Pinto da Costa gostava de evidenciar de uma forma
discreta esse poder. Era uma forma de fazer saber que quem mandava era ele. Quem
estivesse sob a sua protecção tinha as melhores nomeações e as melhores classificações. E
protegia quem se aliasse a ele, incentivando a aproximação dos mais indecisos.
PC queria uma organização perfeita e o controlo absoluto sobre todas as situações. Mas
os jornalistas eram indiscretos e perigosos para o negócio. Não era muito saudável que se
levantassem muitas suspeitas, e esse sector tinha também de começar a ser muito bem
controlado. Pinto da Costa sabia insinuar-se e cativar. Quando lhe convinha, promovia
encontros com directores de jornais e, de uma forma desinteressada, começava a gabar-lhes
os feitos e o trabalho. Incentivados pela guerra estabelecida pela concorrência e sabendo que
quem obtivesse maior número de informações junto dos grandes clubes era quem mais
vendia, ninguém se negava a esses encontros. Era impossível, porém, controlar toda a gente
e, através de algumas acções de intimidação, estabeleceu-se um clima de medo para os que
teimavam em mostrar-se independentes.
Normalmente às quartas-feiras, o presidente reunia-se com os jagunços e indicava-lhes
qual o jornalista que tinha de ser encostado e insultado. Nos dias dos jogos, os contratados
passeavam livremente pelo camarote da Imprensa e, através de insultos e ameaças,
exerciam uma tremenda pressão sobre alguns jornalistas. A intenção era clara: promover o
medo e o consequente silêncio. Durante a semana, quem tivesse o atrevimento de não
analisar uma situação conforme lhes convinha podia ter a certeza que tinha à sua espera na
primeira oportunidade alguém com o seu jornal na mão a ameaçar que o fazia engolir aquele
pedaço de papel.
Pinto da Costa era mestre na política da divisão, e ao longo dos tempos foi criando
divisões entre os jornalistas, porque tinha consciência do perigo que representavam quando
todos se resolvessem unir e impor os seus direitos. A organização era-lhe favorável, e ele
sabia como jogar todos os seus trunfos. Um negócios implantado no seio da arbitragem era
exactamente aquilo que lhe faltava. A Olivedesportos e a agência de viagens «Cosmos»
estavam a facturar como nunca. Tinha conseguido vários exclusivos que lhe permitiam
efectuar o mais variado tipo de operações, sobrefacturando sem medo de poder ser
contestado. Tinha o presidente federativo na mão, e até nem foi muito difícil conseguir isso.
Dava-lhe gozo colocar os da capital a trabalhar para a sua organização. Um cartão de crédito
sem limite e umas viagens oferecidas ao casal que comandava as operações federativas
bastaram para que pudesse facturar alguns milhões. Pinto da Costa estava adiantado em
relação a todos os outros. Já há muito que tinha entendido que o futebol era a indústria que
mais rendia em 90 minutos.
Mas PC não era infalível. Também cometia os seus erros. Quando, através do, agora,
grande amigo e sócio camuflado, Joaquim Oliveira, ofereceu um cartão de crédito sem limite
ao federativo e à sua mulher, nunca lhe passou pela cabeça que a mulher deste, numa das
viagens da nossa selecção, se lembrasse de utilizar o respectivo cartão em compras pessoais,
gastando quase dois mil contos. O cartão foi de imediato cancelado. Numa viagem a
Liechtenstein, principado onde o clube de PC foi disputar um jogo particular, um emigrante
português, que se dedicava à pintura de automóveis e também fazia uma perninha como
empresário de jogadores de futebol, conseguiu criar uma grande amizade com PC e Reinaldo.
O indivíduo tinha boa pinta e falava várias línguas. Era inteligente e mostrou-se conhecedor
do ramo. E como era necessário preencher a vaga de Luciano D´Onofrio, a solução estava
mesmo ali à mão. José Veiga tinha todos os predicados para entrar na organização e, num
ápice, apareceu em Portugal como sócio de Joaquim Oliveira. Grande jogadores começaram a
passar pela sua mão. Ganhou prestígio, mas a sua ligação aos Oliveira limitava a sua acção.
PC estabeleceu então uma nova estratégia:
-O José Veiga tem-se mostrado competente e capaz. Tem-nos dado muito dinheiro a
ganhar, mas está na hora de se desfazer a sociedade.
Joaquim Oliveira não entendeu onde o presidente queria chegar e não hesitou em
perguntar:
-Mas não estou a entender. Se ele nos está a dar bom dinheiro, porque é que vamos
desfazer a sociedade?
PC tinha acordado mal-disposto e, ainda por cima, a sua gata, logo pela manhã, tinhalhe
derramado leite sobre as calças. Olhando a nódoa mal disfarçada junto à carcela, explicou
o seu plano:
-Se desligarmos o José Veiga da nossa organização, simulando um desentendimento, ele
fica mais livre para poder trabalhar com outros clubes, nomeadamente com os nossos
maiores adversários. Com esta acção, para além dos lucros que daí podemos retirar, ficamos
com a possibilidade de minar os nossos adversários por dentro. Ficamos com o campo livre
para lhes vendermos jogadores com rótulo dourado, mas fora de prazo, e também podemos
vender os seus melhores jogadores para clubes estrangeiros, criando, assim, focos de
instabilidade ao mesmo tempo que se lhes diminui a força.
Joaquim Oliveira nem queria acreditar no que ouvia. Aquele homem era de facto um
manancial de inteligência. Dois dias depois, estava desfeita a sociedade e, tal como fora
previsto, José Veiga tornou-se num dos empresários mais conceituados da nossa praça.
Mas a completa organização do sector da arbitragem, era o negócio que agora fazia
perder mais tempo a PC. Reinaldo Teles tinha descoberto o ovo de Colombo e revelado jeito
para controlar a situação.
Com um tiro podia matar com facilidade dois coelhos. O seu clube não tinha dinheiro
para andar a gastar em arbitragens, e a sua política nunca foi a de gastar, mas sim a de
cobrar. Toda a gente sabia que ele não era homem endinheirado, e alguns dos que, nos
primeiros anos, ainda ajudaram o clube quando se tornou necessário, agora fugiam a essa
situação, porque se sentiam traídos com os negócios efectuados por PC. Era a velha filosofia
de que era possível enganar toda a gente durante muito tempo, mas não sempre. Como
gostava de dizer, «não corre mais o que caminha, mas sim o que mais imagina». Por isso,
tornava-se necessário pensar sempre em novas estratégias.
Quem emprestava dinheiro queria garantias, e o clube ia ficando hipotecado a essas
situações, perdendo algum património sem que ninguém levantasse a voz para travar esse
tipo de situações. Pinto da Costa sentia-se inatingível. Estava acima do poder e até o
desafiava, sem ser punido por isso. Tinha a força do seu clube por trás. As vitórias, os golos e
as alegrias. Tudo era feito em nome do futebol.
Pinto da Costa sabia que tinha muitos inimigos, e não podia falhar dentro do relvado. O
controlo sobre árbitros era a solução que mais garantias dava para que se continuasse a
somar títulos, e Reinaldo Teles tinha a solução na mão, sem gastar dinheiro com isso, muito
pelo contrário, ganhando milhares. Reinaldo limitou-se a deixar germinar o negócio. Não era
necessário movimentar-se. As pessoas vinham ter com ele para estabelecer o primeiro
contacto. Já não se negociava com prendas, mas com dinheiro vivo. Foi mesmo estabelecida
uma tabela, mas Jorge Gomes não estava muito de acordo.
-Isso das tabelas não tem jeito nenhum. Os jogos têm de valer pela importância que
têm. -
És capaz de ter razão, mas aqui no bar está a dar muita barraca. Temos de falar como
presidente.
Pinto da Costa já se tinha apercebido da situação e também não andava muito satisfeito
com a exposição pública. Havia que evitar um devassa que, de dia para dia, se tornava mais
fácil de empreender, principalmente da parte dos inimigos do costume. Ele mesmo era cliente
assíduo do bar e não queria ser visto no local na companhia de árbitros e muito menos
envolver-se directamente no negócio.
-Vamos «lavar» a imagem que está a passar lá para fora. Esta situação tem que ser
alterada. Muito embora utilizes o teu bar para o primeiro contacto, combinas depois os
encontros para o restaurante do teu primo. O local é mais decente, menos visto, e não é tão
frequentado por gente do futebol. E sempre tem ao lado um bom jardim que dará sempre
para meditar um bocadito...
-Também acho que essa é a posição mais acertada. Vamos mudar isto, e já - concordou
Reinaldo.
Com uma organização mais eficiente, Reinaldo Teles elaborou uma carteira de árbitros
seleccionados por preços, acessibilidade, categoria e forma de actuar. O prémio de cada favor
era estabelecido conforme a importância do jogo, e de início, Reinaldo cobrava apenas um
terço do estabelecido, mas, mais tarde, quando verificou que os seus favores eram cada vez
mais requisitados, passou a cobrar 50 por cento.
Ninguém discutia preços nem duvidava do empenhamento de Reinaldo Teles, que
sempre que lhe era possível marcava a presença no jogo onde estabelecera o seu melhor
negócio.
Mas o volume de pedidos cresceu tanto, que Jorge Gomes começou a ser mais
requisitado, entrando no negócio a todo o vapor. Enquanto Reinaldo assumia os seus
compromissos e as suas responsabilidades no negócio, Jorge Gomes estava mais virado para
o lucro fácil. Fazia-se intermediário, cobrava a respectiva verba e nem sempre os árbitros
viam a fracção combinada, o que dava origem a alguns protestos rapidamente silenciados
com as ameaças do costume.
Jorge Gomes foi mais longe. Com a ambição de ganhar tudo, a maior parte das vezes
nem sequer falava com os árbitros e esperava simplesmente que os resultados fossem
favoráveis para ficar com a respectiva verba. O negócio até era muito mais rentável na 2ª
Divisão. Os jogos eram menos vistos, os árbitros estavam menos expostos e toda a gente
queria subir. Foi num negócio entre duas equipas de 2ª Divisão que Jorge Gomes foi pela
primeira vez desmascarado nas suas vigarices.O árbitro era alentejano, mas tinha um
compadre no Porto, proprietário de um restaurante. O lugar era típico e até se cantava lá o
fado. Um representante de um dos clubes foi falar com o dono desse restaurante, levando
uma proposta em carteira.
-Sabemos que és compadre do João Cravo, e ele vem apitar, no domingo. Não podemos
perder. Tens de nos ajudar.
-Está bem, eu falo com o homem.
-Quanto é que achas que lhe podemos dar?
-Mil contitos, mas 200 são para mim.
-Tudo combinado. Trata do negócio.
Passados poucos dias, o mesmo elemento desse clube surgiu no restaurante do
compadre de João Cravo para lhe dizer:
-Não trates de nada, porque o meu vice e o meu presidente foram falar com o Reinaldo
Teles, e ele garantiu que tratava do assunto todo. Para tratar disso, já ficou lá com dois mil
contos.
-Mas eu resolvia isso com mil.
-Oh, pá, nem me quero meter nessa merda! Mandaram-me falar contigo e foram ao bar
do gajo e ele sacou-lhes dois mil contos. Fiquei bera com isso e obriguei-os a prometeremme
que os teus 200 contos estão garantidos.
-Tudo bem, não há problema. O Reinaldo que me telefone que eu trato do encontro. O
homem vem de véspera e janta no meu restaurante.
Na véspera do tal jantar, Jorge Gomes telefonou ao dono do restaurante e combinou o
encontro com o árbitro. Quando este chegou, foi logo posto ao corrente do que se estava a
passar e esperou até quase de madrugada por Jorge Gomes. Como esta não aparecia,
acabaram por desistir, embora mantendo a esperança de que ele telefonasse. Mas até à hora
do jogo... nem um telefonema nem uma palavra.
O clube que entregou os dois mil contos a Reinaldo ganhou, mas sem qualquer
interferência do árbitro. No final, de regresso ao restaurante do seu compadre, o árbitro
voltou a falar no assunto.
-O Jorge Gomes não me ligou nem disse nada.
-São uns filhos da puta. Ficaram com os dois mil contos e nem sequer se dignaram a
falar comigo. Esses gajos são burros como portas. Andam a dar dinheiro a esses chulos.
De facto, os dois mil contos ficaram na posse da organização de Reinaldo, sem que este
tivesse o mínimo trabalho ou interferência no desenrolara do jogo. E o dono do restaurante
nunca mais viu os tais 200 contos.
Jorge Gomes sabia jogar com a situação e tinha consciência de que, como não se podia
falar abertamente destes negócios, dificilmente se descobriria este tipo de vigarice.
Uma outra vez, no final de um jogo em que o árbitro foi um internacional nortenho, o
presidente do clube que venceu acompanhou, no final da partida, esse árbitro ao seu
automóvel e pelo caminho disse-lhe abertamente:
-O Jorge Gomes já falou consigo?
-Comigo? Não. Porquê?
-Eu dei-lhes três mil contos para si e ele garantiu-me que já lhos tinha dado.
De súbito, começou a chover e, no momento em que o presidente desse clube saltava
um charco de água e abria o guarda-chuva para abrigar o árbitro, ambos verificaram que
Jorge Gomes, embrulhado numa gabardina, se dirigia a eles.
O árbitro não hesitou, e mesmo ali agarrou-o pelos colarinhos, enquanto lhe dizia:
-Ó meu filho da puta, andas a governar-te à minha custa!
-Tem calma, eu vinha agora trazer-te o dinheiro.
O presidente resolveu então intervir, para evitar que aquilo se transformasse num
escândalo.
-Tenham calma. Vamos resolver isso civilizadamente. Você ainda me disse ontem que já
tinha dado os três mil contos a este homem.
-É que ainda não tive oportunidade de o encontrar.
-Tem aí o dinheiro? - perguntou o presidente.
- Não.
-Então avise o Reinaldo Teles que amanhã vou ao bar dele e se não me devolverem os
três mil contos, armo um escândalo que nem vos passa pela cabeça.
Foram muitos os casos como este. Jorge Gomes estava a comprometer o negócio com as
suas vigarices, mas o certo é que Reinaldo lhe aparava todos os golpes, e PC começou a
desconfiar que eles estavam feitos, muito embora não revelasse o facto para não perder a
confiança de Reinaldo, muito menos agora, que ele lhe tinha apresentado a Maria. Uma
rapariga por quem se estava a apaixonar e para a qual até arranjou um emprego no clube.
Semanalmente, eram muitos os milhares de contos que se movimentavam em negócios
com os árbitros. Reinaldo Teles e Jorge Gomes já evidenciavam sinais exteriores de riqueza.
Os negócios eram realizados em dinheiro vivo, mas, quando isso não acontecia, também não
havia problema para controlar a situação e não deixar vestígios. Reinaldo recebia os cheques,
trocava-os no casino, levantava dinheiro na troca de fichas e entregava em cash aos árbitros.
Não deixava qualquer tipo de vestígio.
No entanto, esta situação levou-o a viciar-se no jogo. Com alguns montes de fichas na
mão, começou a não resistir à tentação de arriscar algum na roleta e perdeu muitas centenas
de contos, desde logo. Jorge Gomes não gostou da situação e por diversas vezes tentou fazer
com que o seu amigo deixasse o jogo.
-Não gastes dinheiro nessa merda. Não vês que ninguém ganha, e quando ganha, no dia
seguinte deixa-se o dobro.
-Deixa lá. Isto dá-me gozo, e o dinheiro é dos camelos. Eu controlo a situação, - Posto
isto, apostou tudo o que tinha no preto. E ganhou.
-O que é que eu te dizia, Jorge?...
Pinto da Costa e Reinaldo Teles tinham encontrado nos escalões inferiores as suas
melhores fontes de receita nas negociatas directamente relacionadas com processos de
corrupção da arbitragem. O nível dos dirigentes era mais baixo, e a vaidade dos
endinheirados empresários que procuravam o futebol para evidenciarem a sua posição social
estava a ser soberbamente explorada.
Pinto da Costa esfregava as mãos.
-Como é fácil ganhar dinheiro no futebol. Quando assumi a presidência do clube, nunca
imaginei poder chegar a esta situação e ganhar tanto dinheiro.
-Mas, desta vez, veja lá se tem mais cuidado com os investimentos que faz. Siga o meu
exemplo; gasto algum no jogo, mas estou sempre bem de vida - juntava Reinaldo Teles,
sempre prudente.
-Isso não é de admirar. O teu negócio dá sempre. Agora estás a ver-me a gerir uma casa
de putas? Toda a gente me caía em cima.
-Não é bem assim. Vejam o meu exemplo. Não é segredo para ninguém que sempre vivi
à custa da prostituição. Sim, porque não tenho as gajas para andarem a fazer cócegas aos
clientes e eu não ganhar nenhum. Ninguém vai ao meu bar beber um copo porque o whisky
de lá é muito bom ou a música óptima.
-Nisso tens razão. A maior parte do whisky que lá vendes até está marado! Só mesmo as
gajas é que são boas. Por falar nisso, já há muito tempo que não me apresentas uma
novidade.
-E a Maria?
-Adoro aquela gaja. Pelo menos agora tenho-a junto a mim mais tempo e sem ninguém
desconfiar de nada. Mas isso não quer dizer que não vá provando uma daquelas novidades
que vão aparecendo.
-Estou à espera aí de umas gajas novas que vêm da Rússia e hei-de arranjar-lhe alguma
coisa. Mas, voltando à conversa anterior, não concordo muito consigo quando me diz que ter
um bar de alternos é mau e que não dá prestígio. Você é testemunha de que esses gajos
todos não me largam e estão fartos de dizer que sou um tipo porreiro. Até me querem fazer
uma festa de homenagem. Não vê, nas viagens ao estrangeiro que fazemos com o clube, as
mulheres deles a juntarem-se à minha sem qualquer tipo de preconceito. Toda a gente sabe
que é a minha mulher que gere as putas, que lida com elas todos os dias e, sabe uma coisa,
mulheres dos nossos vices e de alguns dos acompanhantes que habitualmente nos seguem,
fizeram-se grandes amigas dela e algumas até puxam conversa para saberem como é o
ambiente no bar. Isto é um mundo de hipocrisia, e o que é necessário é saber viver nele.
-Então eu não sei disso!? Eu levo muitas vezes a tua mulher aos jantares que os clubes
estrangeiros nos oferecem, enquanto tu ficas com os jogadores.
-Bem, mas aí eles não conhecem a Luísa. E ela até tem boa pinta.
Pinto da Costa ouviu o telefone tocar, levantou-se do maple onde estava sentado e foi
atendê-lo na sua secretária.
-Tudo bem, obrigado.
Após uma curta pausa para ouvir o seu interlocutor, PC puxou uma folha de papel e
escreveu um nome.
-Já sabia que ele nos ia nomear esse árbitro. Fui eu que lho pedi pessoalmente. Sabe, o
jogo é importante e não podemos arriscar... OK! Até logo e obrigado. Era o Adriano Pinto -
disse PC.
-Ele está a ajudar-nos bastante.
-Que remédio ele tem. Se não fosse assim, tirava-lhe o tapete.
-Mas ele ajudou-nos bastante no início e pode ajudar-nos ainda mais.
-Sei perfeitamente que tenho aprendido muito com ele. No início, foi o Adriano que me
abriu os olhos e me ensinou que caminhos devia percorrer para ganhar os títulos que
ganhámos. Mas agora quem manda no futebol sou eu. A força está do nosso lado, e se ele
não fizer o que mandamos, não tenhas dúvida que lhe tiro o tapete, e ele sabe disso.
Reinaldo Teles lembrou-se do quanto Adriano Pinto era importante em toda a estratégia
estabelecida. Só a sua amizade já era bom para o negócio que começou a ser montado.
Pinto da Costa tinha uma visão extraordinária em relação ao futuro e começou a urdir a
sua organização. Reinaldo Teles e Jorge Gomes continuavam a dar todo o apoio nos negócios
com os árbitros, apostando na ajuda a clubes de escalões inferiores. Com esta acção, iam
ganhando algumas centenas de contos semanalmente e tinham cada vez mais os árbitros na
mão, não sendo necessário, por isso, gastar nem um tostão quando esses árbitros viessem
apitar o seu clube.
Entrava-se num ciclo vicioso. Os árbitros ficavam de tal forma hipotecados a Reinaldo
Teles que, quando fossem nomeados para os jogos com o seu clube, não tinham força moral
para o trair e nem sequer era necessário comprá-los. Mas nem tudo corria da melhor forma,
e Reinaldo teve consciência de que não dominava o sector conforme julgava, quando, por
diversas vezes, saiu derrotado em acções por ele desenvolvidas.
Em 1992, na última jornada do campeonato da 2ª Divisão, Reinaldo Teles foi contactado
no seu bar por um clube que tinha hipóteses de subir de escalão e que ia jogar com outro
que se não ganhasse seria despromovido. O negócio ficou acertado, comprometendo-se
Reinaldo a entregar ao árbitro três mil contos, garantindo outro tanto para si. O árbitro era
da capital e, depois de contactado num dos grandes hotéis da cidade por Jorge Gomes e
Reinaldo, comprometeu-se a fazer o frete e a ir receber a verba combinada no domingo à
noite ao restaurante do primo de Reinaldo.
O clube protegido por Reinaldo era o visitante, e ao intervalo já estava a ganhar por 3-0
com uma arbitragem verdadeiramente escandalosa. A ameaça de invasão de campo estava
iminente, mas nem isso assustou o árbitro da partida. Mas, perante tal situação, o presidente
do clube visitado, sabendo que o negócio tinha sido feito por Reinaldo e conhecendo o
montante da verba combinada, no interregno da partida entrou na cabina do árbitro e, com o
descaramento que provinha do desespero, fez directamente a sua proposta ao árbitro e
fiscais de linha.
-Sabemos que Reinaldo Teles vos ofereceu três mil contos e vocês podem sair daqui
mortos.
Retirando uma pequena pasta de debaixo do braço, puxou de um grande maço de notas,
colocou-o em cima da mesa que estava na cabina do árbitro e apostou forte quando disse:
-Estão aqui cinco mil contos e queremos ganhar. A vossa protecção está garantida.
Saiu da cabina do árbitro e esperou pacientemente pelos últimos 45 minutos. O
inevitável acabou por acontecer: o árbitro deu de tal forma a volta á situação, que o jogo
terminou com um resultado de 4-3.
Reinaldo Teles tinha sido derrotado na sua estratégia e prometeu vingança ao árbitro. O
certo é que esse árbitro abandonou o ofício mesmo antes de atingir o limite de idade.
Reinaldo Teles sabia que tinha de ser duro na sua acção para não perder o controlo da
situação, e Pinto da Costa avisou-o muitas vezes.
-É necessário ser duro e inflexível.
Ambos se recordavam bem de um caso passado uns anos antes com um árbitro
alentejano que foi apanhado com a «boca na botija».
Desde que tinha sido promovido ao primeiro escalão, Francisco Silva revelou uma grande
ambição pelo dinheiro, aceitando negociar sempre que possível com Reinaldo Teles. Mas
depressa verificou que era ele quem dava a cara e sofria a consequência dos escândalos a
que ficava obrigado.
Reinaldo ganhava tanto como ele e, por vezes, até mais. Este árbitro tinha falado várias
vezes com os presidentes dos clubes que favorecia, e eles acabavam por confessar quanto
tinham dado a Reinaldo ou a Jorge Gomes. Achou que aquilo era uma exploração e resolveu
actuar por conta própria.
Pinto da Costa teve conhecimento da situação e avisou Reinaldo Teles do perigo que
aquela atitude constituía.
-Vamos tratar da saúde desse gajo, para que não haja mais fugas. Quando souberes de
um contacto directo, avisa-me que eu trato do resto.
Reinaldo Teles assentou com a cabeça em sinal de concordância e saiu do gabinete do
presidente a pensar na forma como deveria actuar.
Jorge Gomes estava à espera dele e, depois de discutirem o assunto, não teve
contemplações.
-Vamos fodê-lo. Mandamos dar-lhe uma tareia, para ver se ele aprende.
Reinaldo não respondeu logo, e passados alguns segundos acabou por dizer:
-Dar-lhe uma tareia não é solução. O presidente garantiu que tinha outra estratégia. Só
temos de estar atentos e avisá-lo quando soubermos de algum negócio directo.
A oportunidade não tardou a chegar. Francisco Silva pedia que nem um cego, e a
informação tão desejada acabou por chegar.
-O presidente do Conselho de Arbitragem (Lourenço Pinto) era da total confiança de
Pinto da Costa e deu-lhe a informação tão esperada.
-Temos o homem na mão. Ele telefonou ao Rocha (Manuel Rocha, presidente do
Penafiel) e pediu-lhe dois mil contos pelo jogo de domingo. Vamos fazer-lhe uma
emboscada.O Rocha leva um gravador quando lhe for entregar o dinheiro, e depois entramos
nós em acção.
-Sigam com a operação, mas lembrem-se que temos de ficar sempre de fora.
Quando se viu desmascarado, o Silva chorou, pediu perdão, mas não adiantou nada.
Tinha sido feito. Houve ainda algumas hesitações não sabendo bem se devia levar o assunto
para a frente ou apenas pregar um tremendo susto ao Silva, mas o escândalo rebentou e não
foi possível segurar a situação.
PC e Reinaldo mais uma vez saíam ilibados do problema gerado, assumindo o papel de
anjinhos, mas a força que detinham foi bem evidenciada. Para os outros árbitros, o aviso
surgia sempre na forma de um «lembrem-se do que aconteceu ao Silva, que fugiu à nossa
protecção, quis fazer os seus negócios sozinho e acabou por se espalhar; mais vale ganhar
menos mas estar devidamente protegido».
O sistema voltava a estar sob controlo, e a submissão da maior parte dos árbitros a
Reinaldo era cada vez mais forte. Ele sabia que não podia perder aquele negócio. A árvore
continuou a dar os seus frutos, mesmo fora de época.
O restaurante do seu primo transformou-se num autêntico estabelecimento cambial, tal
era o volume de negócios que ali se desenvolvia. Os cheque voavam de mesa para mesa,
desaparecendo debaixo dos pratos de feijoada.
José Silveira, um árbitro transmontano com algumas dificuldades na vida, devido aos
maus negócios que tinha efectuado na sua empresa, necessitou, entretanto, de comprar uma
carrinha Passat e falou com Reinaldo para lhe emprestar três mil contos para efectuar o
negócio. Reinaldo levou-o ao presidente, e este não hesitou em passar-lhe o respectivo
cheque para a compra da carrinha, mas exigiu ao árbitro que este lhe passasse um outro
cheque da mesma importância, mas com um prazo mais alongado. Ambos concordaram, e o
árbitro levou os três mil contos.
Quando Reinaldo regressou ao gabinete do presidente, perguntou, um tanto espantado:
-Não é um risco muito grande emprestar dinheiro a este gajo?
-Claro que é sempre um risco, mas não vamos ficar sem esse dinheiro. Isso foi apenas
um investimento. Nós vamos precisar dele.
Passadas poucas semanas, o clube de Pinto da Costa lutava pelo título com o seu
principal rival (perigosamente próximo, nessa temporada), e havia uma deslocação difícil
mais a norte do País. PC chamou Reinaldo e explicou-lhe a situação:
-No domingo, vamos jogar o título. Temos de ganhar, de qualquer maneira, e as coisas
não estão nada fáceis. Chegou a altura de pedir contas ao teu amigo árbitro de Trás-os-
Montes.
Reinaldo entendeu logo o que o seu presidente queria; pegou no telefone e discou o
número do árbitro.
Do lado de lá atendeu uma voz grossa e bem timbrada que Reinaldo identificou de
imediato:
-Olá, estás bom?
-Quem fala?
-É o Reinaldo. O presidente mandou-me falar-te, porque precisa daquele dinheiro que te
emprestou.
-Mas agora não tenho essa verba...
-Mas tu prometeste!!!
-Claro que prometi, mas as coisas correram mal.
-Sabes que o presidente tem um cheque?
-Sei. E o que é que ele vai fazer?
-Nada, se tu te portares bem.
-Olha que porra. Até parece que ando a portar-me mal.
-Não é isso. Vais ser nomeado para fazer o nosso jogo de domingo e nós temos de
ganhar de qualquer maneira. Não interessa como, temos é de ganhar.
-Já sabes que comigo não há problema. Diz ao presidente que pode contar comigo. Mas
vê lá se me toca alguma coisa.
-Deixa isso comigo. Faz a tua parte, que nós depois cá nos entendemos.
No dia desse jogo, o árbitro transmontano passou pela maior vergonha para dar a vitória
ao clube de PC, inventando um penalti que nunca existiu, com a agravante de tudo isto se
passar em casa do adversário, situação que lhe originou uma penosa fuga pelas traseiras.
Mas ele já estava muito batido nestas «saídas à comandante», assim baptizadas porque
normalmente aconteciam no jeep do comandante da GNR.
Os jornais, a rádio e a televisão comentaram o escândalo, mas o título foi assegurado.
Dias depois, o árbitro transmontano, que de bruto só tinha o aspecto físico, foi em busca
do cheque dos três mil contos que tinha passado a Pinto da Costa, mas este nem sequer o
recebeu, mandando recado por Reinaldo:
-O presidente disse que aquele dinheiro nada tinha a ver com o empréstimo que te fez.
São negócios diferentes. Nós fizemos-te um favor e tu retribuíste com outro.
-Mas já viste o que passei no domingo para não ganhar nada com isso?
-Tem calma que vais recuperar esse dinheiro. Eu disse-te que não havia problemas, não
disse? E vais ver que não há.
-Como é que então vais resolver essa situação?
-É fácil. Vou arranjar-te uns joguinhos e clientes para te pagarem o frete. Nós ficamos
com o dinheiro e abatemos à dívida.
-Isso não é justo - disse o árbitro, ao mesmo tempo que dava um murro na mesa.
-Não te enerves, porque a situação não é tão injusta como tu julgas. Já sabes que
connosco podes ganhar muito dinheiro e vais até superar com toda a certeza essa merda dos
três mil contos. Deixa isso connosco, que nós arranjamos-te jogos para cobrir isso e muito
mais. De facto não faltaram jogos a José Silveira. Reinaldo não se cansava de lhe arranjar
nomeações e pedir os respectivos fretes, mas a devolução do cheque é que nunca foi
efectuada, tendo sido utilizado várias vezes para exercer sobre o árbitro o vais variado tipo
de chantagem.
Os escândalos foram-se avolumando, e o árbitro transmontano ficou de tal modo
hipotecado à situação que mais tarde teve de fugir para o estrangeiro para evitar a prisão.
Algures no golfo Pérsico, onde tentava montar um negócios de camelos, o pobre árbitro
transmontano dizia mal da sua vida:
-Grandes cabrões, servem-se de uma pessoa e quando ela já não é necessária lançamna
pela borda fora. Mas eles não vão perder pela demora!
José Silveira era apenas um exemplo de como alguns árbitros estavam agarrados a
Reinaldo Teles e eram obrigados a executar todos os seus planos, muito embora, no meio de
toda esta estratégia, surgissem algumas falhas no sistema. O certo é que os árbitros que
mais dinheiro ganhavam com os negócios de Reinaldo Teles eram aqueles que apareciam
mais vezes a apitar os jogos do seu clube, sendo-lhes exigidos favores à troca de nada.
Quanto mais egoísta era o árbitro e mais gastador se mostrava, mais hipotecado ficava.
Quando queriam montar negócios ou necessitavam de dinheiro para cobrir algumas despesas
da sua vida particular, telefonavam a Reinaldo Teles, e este, salvo raras excepções, nunca se
fazia rogado na execução dos empréstimos, mantendo sempre em sua posse alguns
documentos comprovativos.
Reinaldo Teles sabia bem avaliar a potencialidade dos empréstimos e quanto essa verba
lhe iria render. Presos pelas dívidas, os árbitros em causa tinham de se submeter às ordens
emanadas por Reinaldo ou Jorge Gomes, uma figura que, aos poucos, se foi transformando
no braço direito do seu dilecto amigo. Os empréstimos eram abatidos mediante os jogos
efectuados, mas a verba descontada na dívida era sempre muito inferior à que Reinaldo
cobrava aos respectivos dirigentes que com ele contactavam.
Alguns árbitros estavam fartos de ser explorados e começaram a surgir algumas fugas.
Contactados pelos clubes adversários dos protegidos de Reinaldo, traíam os objectivos e
colocavam-se do lado contrário, para dessa forma levaram algum dinheiro. A organização era
rígida e não perdoava tais veleidades. Reinaldo estava fora de si e, descontrolado, até
insultava os árbitros em público.
-És um ingrato, mas vou tratar-te da saúde. Este ano já te dei a ganhar mais de 10 mil
contos e tu traíste-me. ` Tás fodido comigo.
O árbitro, tentando arranjar desculpa para disfarçar o negócio que tinha feito, ainda
ripostou:
-Não podia fazer mais do que aquilo que fiz, senão era um escândalo.
-Era um escândalo, o caralho!!! Não viste, há três jornadas atrás, o que fez o Chico?. Foi
preciso marcar três penaltis para ganharem, e ele marcou-os. Aconteceu-lhe alguma coisa?
Claro que não. Ele está sob a nossa protecção.
-Ó Reinaldo, desculpa lá, não me fales dessa merda de desonestidades nem de
ingratidões! Para eu ter ganho mais de 10 mil contos, tu ganhaste o dobro ou mais. Eu
também estou fodido contigo, porque no jogo que fiz anteriormente ajudei o clube que me
pediste e não vi nem um tostão. Não me venhas, por isso, com a conversa de que ele te
pregaram o mico. Eu soube que eles te deram o dinheiro, e eu não ando aqui a fazer fretes
de graça, ou para ganhares só tu.
-Está bem, está bem. Vais ver o que te vai acontecer!
E aconteceu mesmo: esse árbitro, que tinha subido ao primeiro escalão no ano anterior,
acabou por ser novamente despromovido.
Reinaldo não perdeu a oportunidade para lançar o aviso sobre os outros:
-Estão a ver o que acontece a quem nos tenta foder e não quer colaborar connosco?
Abram os olhos, comigo é que ganham dinheiro!
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