Diz-se, e bem, que errar é humano. Mas para os presidentes do Benfica a velha máxima não se aplica. Sobretudo para os dois últimos, porque dos restantes, ou o conhecimento histórico escasseia, ou a memória se desvaneceu.
Sinal dos tempos. Sinal de uma ou duas gerações mimadas, que só sabem exigir. Que não sabem contextualizar. Que desprezam o conhecimento histórico. E até mesmo os factos. Que, por ignorância, se julgam donos da verdade. Que cedem ao imenso ruído decorrente da hemorragia comunicacional em que vivemos. A informação é muita, verdadeira e falsa; a inteligência, porém, manteve-se como dantes (pouca ou alguma, conforme a distribuição que Deus faz). O resultado é dramático, como se vê em vários planos da vida colectiva - não só no futebol, nem principalmente no futebol.
Na minha vida conheci dez presidentes do Benfica. Um número redondo e que dá para todos os gostos. E todos eles cometeram erros, uns mais graves que outros, uns mais marcantes que outros. Não há presidentes perfeitos. Não há mandatos perfeitos. E se já não os havia no mundo pré redes sociais estupidificantes, agora muito menos - ou julgam que o Noronha, o Manteigas, ou seja quem for que se seguir a Rui Costa, não vai ser igualmente triturado pelos que agora pedem a cabeça de toda a gente? Será uma questão de tempo, à semelhança do que antes já acontecia com os treinadores. O país e o mundo estão a ficar ao nível da taberna. E o Benfica, como clube popular, é uma vítima perfeita.
BORGES COUTINHO: Apanhei-o na infância, quando as estrelas eram os jogadores, e os dirigentes (que poucos conheciam) serviam apenas para ir à secretaria ao fim da tarde assinar cheques. Era um cavalheiro, com sólida formação. É apresentado muitas vezes como um exemplo. Mas, ainda assim, mesmo com Eusébio, mesmo com a grande equipa que herdou, nunca chegou a uma final europeia. No seu tempo, também não havia FC Porto, e o contexto não é negligenciável. Na festa de homenagem ao "King" desautorizou Jimmy Hagan, treinador tri-campeão. Este demitiu-se, o que possibilitou ao Sporting chegar ao título e impedir um até então inédito "Tetra". Erro histórico? Certamente.
Em 1975 desmantelou as equipas de Ciclismo e Hóquei em Patins, numa fase em que o profissionalismo tinha má fama. Livramento acabou no Sporting, onde foi campeão europeu. No balanço final, por culpas próprias ou alheias, deixou um Benfica globalmente mais frágil do que aquele que encontrou.
FERREIRA QUEIMADO: Entrou numa fase difícil, para juntar os cacos. Em 1977 teve oportunidade de resgatar Jordão (então emigrado em Espanha). Por meia dúzia de tostões e muita teimosia, permitiu que ele fosse para o Sporting - à semelhança, aliás, de Artur Correia. Na época seguinte a equipa não perdeu jogos, quase não sofreu golos, mas também poucos marcou (sem ...Jordão e com um Vítor Baptista totalmente alheado da realidade). Com demasiados empates 0-0, acabou por falhar mais uma vez o "Tetra", e permitir ao FC Porto recuperar de um jejum de 19 anos. Ficou três épocas sem ser campeão, algo que não acontecia desde o tempo dos "Cinco Violinos".
FERNANDO MARTINS: Outra figura glorificada como exemplo. O seu maior feito foi ter contratado Eriksson - que na altura chegou como ilustre desconhecido, e revolucionou o futebol encarnado. Mas depois... Em 1984 decidiu vender Chalana e Stromberg (nesse tempo sim, era decisão livre do clube manter os seu principais jogadores), para aumentar a lotação do estádio. O que é certo é que, menos de uma década depois, a generalização das transmissões televisivas transformou o novo terceiro anel num elefante branco quase sempre vazio. Nos anos noventa, chegou a haver jogos oficiais com apenas 5 mil pessoas - ou seja, com 115 mil lugares vagos. E a equipa nunca mais foi a mesma.
Teve uma relação de grande amizade com Pinto da Costa (ainda hoje o FC Porto fica no hotel da família sempre que se desloca a Lisboa), que foi bastante útil... para aquele. Foi com Fernando Martins que o FC Porto ascendeu ao topo do futebol português, no campo e fora dele. Foi também com Fernando Martins, lembremos, que o Benfica levou 7-1 em Alvalade - a sua maior derrota de sempre em jogos com rivais.
JOÃO SANTOS: Prometia um Benfica Europeu, e a verdade é que quase o conseguiu. Os encarnados voltaram, vinte anos depois (em 1988), à final da Taça dos Campeões, embora com um percurso açucarado, repetindo a façanha em 1990. Hoje seria criticado por perder ambas as finais. Enfim. Na altura o problema foi o preço a que isso ficou. João Santos gastou o que havia e o que não havia, e foram esses gastos faraónicos a originar a crise que se seguiu. Ainda assim, deixou sair Rui Águas para o FC Porto, o que, na altura, foi uma faca cravada na alma dos adeptos (eu ainda a sinto). Rompera relações com os portistas por causa de...Ademir Alcântara, fazendo lembrar que o Benfica pôs fim à política de não contratar estrangeiros para trazer...Jorge Gomes.
JORGE DE BRITO: Se o princípio do fim começou com os gastos sumptuosos de João Santos, com Jorge de Brito o Benfica caiu no abismo. Dizia o próprio, já em desespero, que não conhecia a situação financeira do clube. Estranho para quem enriquecera a especular na bolsa. Pelos vistos, havia quem, no clube, lhe escondesse a realidade. Quem o enganasse. Hoje chamavam-lhe, pelo menos, "Banana". Desviou João Pinto e Futre da rota do Sporting, o que valeu o súbito entusiasmo dos adeptos - mas, no segundo caso, uma polémica tremenda que atingiu o nível político, dado o facto de ter sido um adiantamento da RTP a financiar a contratação. Os salários? Logo se via. O resultado foi a falência do clube, os pagamentos em atraso durante meses a fio, e o famoso "Verão Quente", em que Paulo Sousa e Pacheco rescindiram unilateralmente os contratos (João Pinto ainda foi resgatado a tempo, e Rui Costa recusou a proposta), naquilo que foi uma das maiores humilhações da história do Benfica. Títulos? Uma Taça de Portugal, com um plantel de luxo, mas que não recebia salários havia meses. O clube entrava na sua pior fase de sempre.
MANUEL DAMÁSIO: Herdou um clube completamente descapitalizado, descaracterizado, desorganizado, e conseguiu... fazer ainda pior. Acredito na honestidade da pessoa, mas a sua candura e total incompetência, não só desmantelaram o Benfica, como colocaram o futebol português definitivamente nas mãos de Pinto da Costa - que chegou a presidir à Liga e, com o Benfica a dormir, pôde completar o puzzle que lhe permitiu dominar tudo e todos (árbitros, dirigentes, adversários, etc), de modo a que só a bola permanecesse redonda. Os erros sucederam-se. Primeiro demitiu Toni (que havia ganhado um campeonato com os jogadores sem receber) para trazer um Artur Jorge totalmente desfasado da filosofia do clube. De seguida, não só manteve Artur Jorge após uma época desastrosa, como o deixou fazer, com total liberdade, uma limpeza de balneário que deitou fora nomes como Neno, Veloso, Mozer, Paulo Madeira, William, Abel Xavier, Vitor Paneira, Isaías e César Brito (o que, para além das vendas de Rui Costa e Schwarz, e das dispensas dos russos Kulkov e Yuran, deixou o plantel quase a zeros). Depois... demitiu o treinador logo após a terceira jornada da época seguinte. Ou seja, ficou sem jogadores, sem o treinador que os dispensou, e sem dinheiro para refazer a equipa. Uma tempestade perfeita. O Benfica entrava definitivamente no seu "Vietname", abrindo caminho ao populismo.
VALE E AZEVEDO: A lição que devemos aprender é que quando as coisas estão muito mal é sempre possível ficarem ainda pior. Sobre Vale e Azevedo não há muito a dizer. O seu nome diz tudo. Tenho a consciência tranquila de ter votado sempre contra ele, e de ter ido, pela primeira vez, a Assembleias Gerais, apenas para votar contra as suas propostas - mesmo com o pavilhão cheio de gorilas à lá Macaco, e cabeças partidas à saída. Obviamente o Benfica não ganhou nada, levou 7-0 em Vigo, viu serem desmanteladas modalidades, viu ser vendido património ao desbarato (com as comissões a voarem para o bolso do presidente), viu o seu nome manchado no mercado internacional por não pagar as transferências, teve seis treinadores em três anos, dispensou João Pinto a custo zero. Enfim, o Benfica bateu no fundo, e nessa altura lembro-me de me questionar se alguma vez poderia voltar a conquistar títulos, ou se, como temia, se iria transformar numa espécie de Belenenses.
MANUEL VILARINHO: Ninguém lhe tira o mérito de salvar o clube das mãos do vigarista que lhe antecedeu, nem de o ter credibilizado aos olhos dos inúmeros credores que batiam à porta da Luz a solicitar o dinheiro que lhes era devido. Numa parceria com o BES (na altura o dono daquilo tudo), pagou dívidas, abriu espaço para a construção do novo Estádio, coisa em que, na altura, poucos acreditavam, mas fica ligado às piores classificações de sempre da equipa de futebol - que em duas épocas consecutivas (6º e 4º) nem sequer se apurou para a Taça UEFA - bem como a uma vergonhosa eliminação na Taça de Portugal, em casa, aos pés do Gondomar. É claro que, naquele contexto, a prioridade não podia ser desportiva. Mas não era preciso descer tão baixo, até porque o treinador que lá estava era...José Mourinho, o efeito começava a sentir-se (aqueles 3-0 ao Sporting...), e foi Vilarinho que o despediu para trazer Toni - que mais tarde despediu também.
LUÍS FILIPE VIEIRA: Um dia será possível fazer um balanço definitivo da presidência de Vieira. Esse dia só acontecerá quando se provar, ou não, em sede da Justiça, as práticas lesivas de que é suspeito. Mas se isso entra, ou não, no seu passivo, o seu activo está repleto de obras e conquistas que ninguém pode apagar. É o presidente que mais títulos conquistou, que mais campeonatos venceu, sendo juntamente com Adolfo Vieira de Brito e João Santos um dos que mais finais europeias disputou (duas, ainda que, no seu caso, apenas na Liga Europa). Nas modalidades não tem paralelo com mais ninguém: campeão europeu de Futsal, duas vezes campeão europeu de Hóquei em Patins, finais europeias em Andebol e Voleibol, domínio nacional absoluto do Basquetebol, várias medalhas olímpicas, entrada esmagadora no desporto feminino com títulos atrás de títulos em todas as modalidades. Insistiu numa aposta na formação de jogadores em dimensão e amplitude nunca vistas em toda a história do clube (hoje a base da Selecção Nacional), e que valeu vendas milionárias que tornaram o Benfica o clube mais rico do país. Contratou alguns dos maiores jogadores que alguma vez vestiram o "Manto Sagrado", como Simão, regresso de Rui Costa, Aimar, Saviola, Di Maria, Oblak, Ederson, Cardozo, David Luíz, Matic, Luisão, Jonas, Fejsa, Garay, Salvio, Gaitán, Gimaldo, Darwin entre outros. Quanto a obras: Estádio, Centro de Estágio, Museu, Pavilhões. Profissionalizou da gestão do clube e da SAD, em linha com aquilo que já acontecia nos principais emblemas europeus. Revitalizou o Jornal, criou a BTV e o Site. Obteve patrocínios sem paralelo face aos outros clubes portugueses e face ao passado do próprio clube. Aumentou exponencialmente o número de sócios. Inverteu o ciclo de poder nos bastidores do futebol português. Conquistou um inédito Tetra, chegou a ter o Benfica em 5º lugar no ranking da UEFA. Foi Vieira que nos devolveu o orgulho de ser benfiquistas, bastante abalado na década que o precedeu. Pena, de facto, que no último mandato estivesse mais preocupado com a sua própria pele do que com o clube que conduzira até então, deixando uma imagem final pouco compatível com o seu imponente legado.
RUI COSTA: Herdou o clube na crise institucional decorrente dos factos ocorridos no último mandato de Vieira, e dividido entre os leais ao antigo presidente, aqueles que queriam mudar alguma coisa e os que queriam deitar tudo abaixo. Entrou com força e dinamismo, devolveu o Benfica aos títulos e às boas prestações internacionais. Contratou com maior assertividade (Trubin, Bah, Enzo, Aursnes, Neres, Carreras, Di Maria, Kokçu, Akturkoglu, Pavlidis), embora no mercado do verão de 2023 tenha falhado em dois casos flagrantes (Jurasek e Arthur Cabral), com custos desportivos inegáveis.
Manteve a aposta na formação (conquistou a Youth League) e reforçou-a nas modalidades, obtendo o maior triunfo da história do Andebol português (European League).
Pecou por candura quanto às arbitragens, ignorando os primeiros sinais de perigo. E nas estruturas internas do clube podia, e devia, ter mexido mais, não permitindo algum aburguesamento de quem o rodeava.
Em 2022-23 teve uma época imaculada. Em 2023-24, aqueles erros na abordagem ao mercado (sobretudo se pensarmos que o Sporting foi buscar o tanque sueco) terão custado o campeonato. E nesta última temporada, além das influências exteriores, também não teve sorte.
Pagou ainda o preço de um novo tempo, no futebol, no desporto, no país, e no mundo. Um tempo extremamente polarizado, em que qualquer poder encontra imensa dificuldade em resistir ao ataque brutal de um negativismo quase patológico, potenciado por ferramentas de partilha que o elevam da tasca a discurso dominante.
Ainda tem trabalho a fazer, e não só não tenho motivos para não acreditar que o faça, como não vejo, por agora, ninguém que o possa fazer melhor.
CONCLUSÃO
Enfim, estas são algumas notas sobre os últimos presidentes do Benfica. Pedaços de história que vão desde a década de setenta até hoje. Como se percebe, todos eles tiveram os seus momentos menos felizes. Ninguém acertou sempre. Alguns erraram mesmo muito. Até demasiado. O passado é muitas vezes trazido sob o manto do mito e da nostalgia. Quando vamos a factos, nem tudo é tão reluzente como alguns (curiosamente, mais aqueles que não o viveram) querem agora fazer crer. O que significa que o presente também não é assim tão negro.
Isto serve para defender Rui Costa, como poderá servir para defender um outro presidente que lhe venha a suceder. O problema não está no Benfica, nem na direcção do Benfica. Nem sequer no futebol ou no desporto. O maior problema está na sociedade que (sobretudo) algumas gerações estão a alimentar, e que caminha toda ela para o abismo, de mão dada com as redes sociais, a ignorância, a estupidez e os populismos.