Poucos minutos depois de terminado o clássico de domingo, e ainda a quente, escrevi aqui que era altura de o Benfica dar o primeiro passo no sentido de deixar a arbitragem tranquilamente no seu lugar, que é um lugar lateral ao que deve ser o espectáculo desportivo. Parece que a direcção da SAD encarnada é da mesma opinião, e as críticas a Pedro Proença ficaram-se pelo óbvio: constatar o erro que decidiu o jogo.
Por muito que custe perder pontos daquela forma, por grande que seja a importância que eles possam vir a ter no desenrolar do campeonato, há que compreender de uma vez por todas que o trabalho dos árbitros é extraordinariamente difícil, que, como toda a gente, se podem enganar, e que, na sua esmagadora maioria, entram em campo com uma firme vontade de não cometer erros, não lhes passando pela cabeça favorecer este ou aquele. Quem abandona o conforto do sofá e assiste a jogos nos estádios, sabe bem que em tempo real a maioria dos lances duvidosos ficam mesmo por esclarecer, e em muitos outros a própria dúvida só é suscitada mais tarde através dos resumos. Eu, por exemplo, assisti ao Benfica-Sp.Braga na Luz, e saí do estádio convencido de que a arbitragem tinha sido relativamente pacífica (eventualmente com um penálti por assinalar – o de Luisão). Só ao ligar o rádio do carro percebi toda a polémica, que lá dentro escapou a quase toda a gente. Isto já se repetiu noutros jogos, a favor e contra.

Na verdade, exige-se ao árbitro aquilo que, honestamente, nenhum adepto ou comentador, em nenhum estádio, consegue fazer. Pretende-se que ele decida “in loco” com a mesma exactidão com que se opina após ver uma dúzia de repetições em todos os ângulos, na maioria das vezes sem que mesmo assim se chegue a um consenso.
O Benfica já foi prejudicado várias vezes, e beneficiado algumas outras. O F.C.Porto e o Sporting também. Tem sido assim desde 2004, ano em que o caso Apito Dourado emergiu e fez ruir o podre edifício que governava o futebol português nas décadas anteriores.
De 1984 a 2004 o F.C.Porto dominou a arbitragem. Durante esse período beneficiou - muitas vezes de forma grotesca - das ajudas dos senhores do apito para, a partir delas, e perante o adormecimento dos rivais, construir a sua hegemonia desportiva. Quero acreditar que - mesmo com um ou outro resquício - esse tempo já acabou. Pode-se pois discutir a competência dos árbitros, a sua melhor ou pior preparação, mas não creio que seja hoje lícito apontar-se o dedo à sua idoneidade. Haverá casos de menor seriedade, mas não são a maioria, nem suficientes para identificar um movimento subterrâneo no sentido de carregar alguém ao colo para as vitórias e os títulos, como sucedeu durante vinte anos com o clube dirigido por Pinto da Costa.
É claro que, num país onde se ama a polémica e a desconfiança, as discussões sobre arbitragem sobrepõem-se claramente à paixão pelo próprio jogo, atraindo sobre si um mediatismo que uma comunicação social tolhida pelas grilhetas da concorrência acaba invariavelmente por abraçar. Desprezam-se jogadores, treinadores, golos, defesas e cria-se assim uma espécie de campeonato paralelo, onde o título supremo é demonstrar que o nosso clube é mais prejudicado que os outros, como se (ou para que) dessa constatação se pudesse extrair algum benefício. Constrói-se um pantanoso cenário em redor dos jogos, que a prazo vai corroendo aquilo que o futebol tem de melhor e mais salutar, em nome de guerras de alecrim e manjerona que não levam a nada que não a sua própria auto-sustentação.
É bom que todos nós – adeptos do futebol – tenhamos ao menos a noção da irracionalidade que o gasto discurso sobre arbitragens encerra. É com orgulho que vejo o meu clube reagir com frieza e objectividade àquilo que – independentemente das consequências - não foi mais do que um momento de infelicidade de quem tinha de decidir num segundo algo que todos demoramos dois ou três dias a analisar esmiuçadamente. Assim outros sigam este registo, e em breve poderemos ter um futebol devolvido àquilo que é a beleza da sua essência.
Sinto-me particularmente à vontade para dizer tudo isto na sequência de um importante jogo em que o meu clube saiu prejudicado, o que de resto já ocorrera gritantemente frente a Nacional e Belenenses, olhando apenas ao último mês e meio. Seria pouco sério fazê-lo num momento em que sucedesse o contrário.
Aproveito, por fim, para reproduzir aqui um artigo notável de Luís Freitas Lobo em "A Bola", sobre arbitragem, e que vai de encontro à opinião que acabo de expressar:
"Não recordo quem disse isto, penso que um antigo árbitro francês (talvez Vautrot) pelos anos 80. Dizia mais ou menos assim: «Apenas existe um animal no mundo capaz de correr veloz de costas, meio virado de lado sobre uma linha sem perder o equilíbrio e olhando ao mesmo tempo para dois lados diferentes, com uma bandeira na mão, que deve levantar quando travar de repente.» É o fiscal-de-linha no futebol. É uma perspectiva demasiada animalesca da função, mas, vendo bem, faz sentido. Os árbitros vivem e apitam sob uma chuva de pressões. É raro eu falar de arbitragens. Por várias razões. Desde logo, porque não está aí a minha paixão e interesse pelo jogo e, depois, porque sempre que os vejo em campo ou assisto a todas estas polémicas, acabo sempre a pensar no mesmo. É que consigo entender uma pessoa querer ser mineiro, ninja ou até desactivador de bombas, mas, sinceramente, não consigo entender querer ser árbitro de futebol. Porque, reparem bem, trata-se de uma actividade em que um indivíduo que gosta de futebol está dentro do relvado sem poder tocar na bola, sempre a correr, a tomar decisões, ouvindo protestos dos jogadores e insultos vindos de todo o lado. Tudo isto durante 90 minutos. Será espírito de missão, não sei.O fiscal-de-linha, então, vive ainda mais na sombra das trevas. Nunca esqueci um debate que ouvi há anos, penso que no Chile, em que um deles se queixava do regulamento disciplinar que previa três jogos de castigo ao jogador que chamasse filho da p… ao árbitro e apenas um ao que chamasse o mesmo ao fiscal-de-linha. Até pode ter piada visto ao longe, mas esta discriminação em relação à mãe do bandeirinha é um princípio tão injusto quanto perturbante, porque há algo de simultaneamente chaplinesco e realista nesta norma.Penso que o princípio de um bom árbitro está em mais do que as regras, conhecer o jogo. Ou seja, mais do que transcrever a lei, entrar na lógica de movimentos e choques que o jogo provoca ou proporciona e, com isso, distinguir meros contactos de faltas. Isto também vale para questões emocionais, não confundindo o que é o jogador a viver o jogo com actos de indisciplina.Em geral, os árbitros percebem-se logo no início dos jogos. Quando parece frágil, os jogadores comem-no. Quando entra feito duro, é o público que o sufoca. Em qualquer situação, muitos erros causam inquietação. E os adeptos desconfiam que algo se passa nas suas costas. Tento fugir a essa sensação. É difícil. Nessas alturas, imagino a melhor forma dos árbitros se defenderem no caso de serem chamados a falar. A resposta que encontro deixa-me ainda mais perplexo. Porque, ao ponto que chegaram as coisas, mais do que pensar na tese da dificuldade física da tarefa, bastar-me-ia ouvir o seguinte: «Não senhor, nós, árbitros, não somos desonestos. Apenas incompetentes.» Quando uma frase assustadora, que reconhece ineptidão, passa a fazer mais sentido e deixa o adepto comum mais aliviado, é porque o futebol, sem o mínimo de sensatez, chegou mesmo à berma do precipício."