Ainda Bruno Lage não tinha sido anunciado oficialmente como novo treinador do Benfica, e já choviam críticas à sua escolha.
Como aqui escrevi, fosse quem fosse o escolhido, iria acontecer o mesmo. Tivesse sido Guardiola, e estou seguro de que haveria quem criticasse por se gastar demasiado dinheiro. Digo mais: caso Rui Costa convocasse eleições antecipadas e as perdesse, ou pedisse a demissão, o seu sucessor em poucos meses iria ser, também ele, fritado nas redes sociais e nas caixas de comentários online. Como fritados foram sendo, ao longo do tempo em que vestiram de águia ao peito, jogadores como Pizzi ou Rafa - ambos com mais jogos e mais golos pelo Benfica do que, por exemplo, Diamantino, Chalana, Magnusson, Isaías, João Pinto, Vítor Paneira ou Carlos Manuel - e agora também João Mário, que ainda há dois anos marcou mais de vinte golos numa época, jogando numa ala do meio-campo. Ou treinadores como Jorge Jesus, Rui Vitória e Roger Schmidt, todos eles campeões nacionais e protagonistas de fases de grande fulgor competitivo do Benfica - além, naturalmente, do próprio Lage. Ou seja, todos, numa lista negra sem fim.
No âmbito das modalidades, tenho visto ao longo dos últimos anos alvos inacreditáveis, como Carlos Lisboa, Carlos Nicolia (dois dos melhores da história nas suas especialidades), Norberto Alves (tri-campeão no Basquetebol), Filipa Patão (que ganhou tudo no futebol feminino, está na lista da UEFA das cinco melhores do ano em todo o mundo) e até Paulo Almeida (treinador do hóquei feminino que leva quarenta competições nacionais seguidas sem perder!). Marcel Matz, por motivos que desconheço (talvez instagrams e twitters), tem sido uma excepção.
A regra é dizer mal de tudo e de todos, pedir sumariamente demissões e destituições (depois? logo se vê...), atacar violentamente, insultar, quando não agredir. Tudo é mau, tudo é péssimo, tudo é escandaloso, tudo é vergonhoso, neste presente caótico e angustiado, por contraste com um passado longínquo, lendário e fantasioso, que não se viveu, não se conhece, e...não existiu.
Bem sei que, no caso do Benfica, uma larga fatia desse lixo tóxico tem origem em perfis falsos, muitos deles criados no tempo de Jota Marques e Saraiva - quando até havia uma empresa para os gerir. Outra parcela deve-se a uma confrangedora ignorância histórica. Depois há as claques, e sabemos que o raciocínio de uma multidão em fúria é correspondente ao da pessoa mais estúpida que lá estiver. Há ainda quem ande ressabiado por ter sido, a dada altura, afastado do clube, e quem viva ressabiado por lá nunca ter entrado, mas estes são estatisticamentes irrelevantes.
Deixando os rivais infiltrados, e os mais ignorantes que se limitam a seguir a onda, centremo-nos nos que verdadeiramente preocupam: os que fazem isto de forma consciente, e estão absolutamente seguros daquela que julgam ser a sua verdade.
Tenho reflectido sobre o assunto, e não consigo fugir à questão geracional. Há de facto uma geração, ou duas, que nascendo e crescendo apaparicados pelo papá e pela mamã, passando por uma escola facilitista onde só fizeram o que queriam e os professores é que tinham a culpa, chegam à maturidade a achar que sabem tudo e podem tudo, enfrentando, porém, um mundo que não conseguem controlar (ao contrário da expectativa que essa vivência lhes foi criando). Isso gera angústias, frustrações e, no limite, revoltas. O passo seguinte é "exigir" da sociedade, das instituições e dos vários poderes, a perfeição - que é como quem diz, que correspondam inteiramente, e a cada momento, a todas as suas vontades e caprichos. Como isso não acontece, e jamais acontecerá, partem para a crítica cada vez mais violenta, desproporcionada e despropositada (aproveitada e potenciada, noutros contextos, pelos populismos políticos). As redes sociais fazem o resto.
Se estamos perante aquelas que dizem ser as gerações mais informadas e qualificadas de sempre, não há qualquer evidência de estarmos perante as mais inteligentes e/ou clarividentes. E mais informação, sem mais inteligência para a saber filtrar, pode transformá-la em simples ruído. Circulando em larga escala, temos uma cacofonia insuportável. Eis o que hoje em dia cerca o Benfica.
Ora como clube mais popular e representativo da sociedade (para o bem e para o mal), o "Glorioso" sofre particularmente com todos estes fenómenos. É um espelho dos problemas sociológicos que o mundo moderno enfrenta. E estando a raiz desse problemas fora do seu âmbito e do seu alcance, tem particular dificuldade em lidar com eles, isto para não ser pessimista e afirmar que nunca o conseguirá fazer.
Não sei, de facto, como isto vai acabar. Suspeito que não acabe bem, nem no Benfica, nem no país, e pior ainda no Mundo - onde muitos outros problemas, muito mais graves, acrescem a todo este caldo sócio- cultural.
A menos que gerações futuras venham, com outro enquadramento e resistências, a saber filtrar melhor todo o ruído que infesta as sociedades actuais em todas as suas dimensões. Venham a saber "exigir" com equilíbrio, e sobretudo exigir primeiro de si próprios, antes de olhar para o lado. Enquanto adeptos também.
A alternativa é a autodestruição. É que o Benfica é nosso, mas de todos nós - não de cada um de nós. Se o estimamos, se o queremos forte e saudável, o primeiro passo é respeitar os outros 5.999.999 de benfiquistas que não vivem no nosso umbigo e têm opiniões diferentes. Ou pelo menos os outros 249.999 sócios, que também pagam quotas, vão aos estádios, querem ganhar, mas não têm de gostar do mesmo treinador, do mesmo presidente, ou dos mesmos jogadores que nós.
Sou do saudoso tempo em que se aplaudiam os nossos, e assobiavam os outros. Cada vez mais isso parece uma excentricidade. Talvez porque antes, no tal futebol "Clássico" que muitos julgam saber o que foi, se viam os jogos como um delicioso passatempo, que ora causava alegrias, ora causava tristezas, mas jamais violentos conflitos verbais e/ou físicos. Hoje, talvez se procurem no futebol paliativos para outros problemas, e outras situações que não têm a ver com um jogo ou um campeonato.
Aqui acima cita-se Bill Shankly, quando disse que o futebol é muito mais do que uma questão de vida ou de morte. Mesmo sendo isso verdade, continua a ser futebol. E se não servir para nos dar alegrias, brincar com as nossa emoções, fazer-nos confraternizar com amigos, encher-nos os fins de semana de esperança, então não servirá para nada.
Isto que alguns benfiquistas querem ou defendem, a tal "exigência" que muitas vezes não passa de mera estupidez ou ignorância, não serve para nada a não ser para minar e destruir o clube e os seus alicerces.